sexta-feira, 25 de julho de 2025

Sobre a metáfora das Haciendas

O excepcionalismo brasileiro em relação aos seus vizinhos hispano-hablantes é vastamente contestado, por muitos sociólogos e intérpretes do Brasil. Além de criar uma falsa autoimagem para nós, de superioridade, ainda contribui para certa inflação das características nacionais e culturais sobre o ordenamento da sociedade. Essa visão perdeu muita força explicativa sobre os determinantes do caráter das sociedades, desde que se compreendeu a força exercida pelo capital na história da estruturação de um país. Quando Oswald de Andrade e, mais tarde, Glauber Rocha apelidaram o Brasil de El Dorado, não foi sem razão suficiente. A proposta de generalização ou de universalização da experiência colonial e decolonial latinoamericana segue uma orientação epistemológica que tem bases bem identificáveis na experiência do continente. El Dorado deu errado, tanto para Oswald quanto para Glauber. O Brasil e a América Latina são parte e todo, segundo essa perspectiva; e podemos elaborar essa estratégia metafórica para cunharmos um segundo pseudônimo para a nossa experiência colonial: o termo hacienda

Para os pouco familiarizados com o termo, hacienda refere-se ao tipo de instituição econômica colonial imposta ao território colonizado pelos espanhóis. Apesar de não serem exatamente como os engenhos, as haciendas eram-lhe muito semelhantes, ainda que se procure distinguir o nosso hegelianismo tropical até bem recentemente. Em linhas gerais, as haciendas eram essas grandes fazendas criadas pelos colonizadores espanhóis para exploração dos recursos naturais da região, seguindo um modelo de dominação colonial que o capitalismo tratará de fazer-nos a nós, brasileiros, identificar igualmente com ele, se eu bem conseguir fazer-me entender. As forças do capital, nas sociedades colonizadas, tendem a hierarquizar as pessoas de maneira semelhante à que se fazia nas haciendas, piramidalizando as relações, de forma que o seu topo siga um sentido, que é sempreo da entrega dos fluxos monetários para as economias desenvolvidas, ainda que ofereça um requinte de crueldade no fato de a dominação ser terceirizada para as elites locais.

Façamos, então, uma explicação do funcionamento das haciendas. Deveremos, para isso, pois, fazer uma breve reconstituição histórica da sua formação. As haciendas foram a solução criada pela corôa espanhola para o problema da decadência das minas de metais preciosos. Elas são, assim, um desdobramento das encomiendas, que foram a primeira forma de enraizamento das populações espanholas no continente americano. Enquanto aquelas já possuíam um sentido de produção diretamente ligado à monocultura, como nos engenhos, estas surgiram para alimentar de insumos necessários as minas dos Andes e do México. Embora não fossem assentadas em trabalho declaradamente escravo, como as minas, as encomiendas acabavam por escravizar a sua clientela por dívidas. 

O regime de dominação exercia-se pelo recolhimento de impostos, que deveriam ser entregues ao encomendero. O encomendero era um cidadão espanhol, assentado como autoridade da porção de terra que lhe fora designada, cuja obrigação era o recolhimento dos impostos e a organização da produção para o abastecimento das cidades mineiras. Deu-se, então, a primeira monetarização da colônia. Deu-se, também, uma reorganização da produção, tanto pela mencionada monetarização, quanto pelo direcionamento do produto para a venda nas cidades. A estrutura social prévia, contudo, "permanecia a mesma". A única diferença era que, acima das lideranças locais, introduzia-se o elemento espanhol, o novo chefe, pervertendo, por sua natureza exógena e exploratória, a eficácia cultural daquele sistema -- mas isso é um subproduto colonial: aquilo de que queremos tratar é da formação da elite crioula, nesse período, que depois estará no centro das relações sociais quando da instituição das haciendas como substituto das primeiras formas de colonização econômica.


quarta-feira, 23 de julho de 2025

O Sentido dos Sentimentos

É certamente mais interessante, embora menos usual, que entendamos os nossos sentimentos, em sua natureza, por meio do sentido posterior que eles tendem a produzir. Se nos perguntamos "por que sentimos raiva?", uma resposta mais eficiente estará relacionada ao sentido final que ela assume. A pergunta deveria ser reformulada para: "sentimos raiva por quê?". Com o caso da raiva, para tirarmos como exemplo, uma resposta possível para essa segunda pergunta seria: para resolver um conflito gerado por algo que nos desagradou. Não precisaríamos, para entender a sua natureza, recorrer aos acontecimentos causadores da raiva, ou ao porquê de aquilo ter causado raiva naquela pessoa, especificamente. Convém responder apenas à pergunta do sentido dos sentimentos. Sendo, assim, capazes, retroativamente, de responder, consecutivamente, às causas do sentimento, veremos que os sentimos para algum objetivo psíquico, se ponderarmos bem: entenderemos o seu significado. As causas, desse modo, explicam-se por seus objetivos. O que é o mesmo que dizer que, se algo antes causou, por exemplo, a raiva, terá sido porque aquilo provocou a raiva por causa do desagrado que gerou, sendo, logo, o sentido dos sentimentos o alívio do desagrado. Torna-se desnecessário pensarmos, por exemplo, na influência dos signos historicamente constituídos sobre o objetivo daquilo que sentimos; ou na falta de precisão fenomenológica dos símbolos linguísticos na elaboração dos sentimentos; ou na impossibilidade de compreender o mundo em termos "isentos". Os recursos simbólicos são, segundo essa abordagem, produtos desses objetivos sentimentais, representando algo mais como instâncias históricas do seu sentido, do que enigmas ou uma realidade paralela ao ser ou mesmo ao ser fenomenologicamente possível, ao ente. Não seríamos, então, a partir disso, mais propriamente aptos a estabelecer alguns alicerces para a construção de uma metodologia sócio-histórica total? Nos moldes do pensado pela escola dos Annales, estaríamos, dessa forma, refinando o seu escopo economicista, para uma compreensão da materialidade histórica da ação humana no seu ponto de vista subjetivo intencional, complexo.