quarta-feira, 21 de agosto de 2024

o recurso ao absurdo e à ironia

Partamos da suposição de que determinado ponto de vista, de que determinada ontologia seja verdadeira. Antes de nos perguntarmos dos seus pressupostos, de esmiuçarmos os seus princípios – para podá-los desde o início –, deixemos esse ponto de vista falar. Os seus voos mais altos, as suas divagações mais absurdas, as suas digressões quase infinitas, deixemos que tudo isso venha à tona. Façamos isso, agora, com ironia. Levemos a cabo o maior dos absurdos dos absurdos que venham a derivar das bases – supostas – dessa ontologia e escutemos com o som ácido do seu contrário. Finjamos, para nós mesmos, que nós somos o oposto do que queremos dizer, para dizermos o que queremos, por meio de uma demonstração ilógica. Em seguida, avancemos mais no absurdo, a fim de responder, dentro daqueles sérios pressupostos ontológicos, às próprias críticas que a pura ironia lançou como verdade, para destruí-la a troco de um deboche; faremos isso com o objetivo de esgarçarmos, tanto mais quanto possível, o alcance final, as conclusões épicas desses pressupostos. Restarão as perguntas: a que tudo isso serve? O que fazer com isso? E podemos continuar, ao infinito, nessa mesma emulação, a fim de fazer testar-se uma hipótese. Quem sabe, assim, encontremos... alguma seriedade.

Peguemos, então, o ponto de vista materialista. O que seria, assim, um materialismo absurdo? Ou, até, um materialismo histórico absurdo? Será que somos capazes de prever um funcionamente de economia-política e de produção ideológica em uma situação de supressão da propriedade privada -- trazendo consigo todas as consequências, como a diminuição do valor conferido ao dinheiro?

quinta-feira, 23 de maio de 2024

A metafísica do impossível

Quando nos obrigamos a aceitar  que os fatos são inamovíveis, estamos submetendo-nos. Por que devemos crer que o mundo opera de maneira a provar a sua existência como superior à nossa vontade? Em última instância, por mais que não queiramos, estamos reconhecendo que, nesse império do mundo, existem coisas impossíveis, que regulam a nossa capacidade de transformação da realidade a nosso favor. Por pensarmos na fatalidade inerente, sob a constatação inequívoca da nossa falta de poder, entendemos que as coisas impossíveis constituem uma organização do mundo, uma metafísica. O trauma, a dor, a tragédia, o amor fati: como conceitos, ainda que a posteriori, retratam a inexistência de uma especulação metafísica em aberto. Só há a metafísica do fato, um império. O realismo nietzscheano e existencialista, ou ateu, mesmo que se diga afirmador da vida, entende uma existência metafísica do real: o possível e o impossível. Ora, mas não seria a plasticidade do mundo infinita? Para os dessa corrente, parece que não. Sem nem perceber, defendemos -- nós, reles mortais, e eles, grandes filósofos -- a existência de um romantismo realista (e há que se querer o contrário: um realismo romântico)): é uma explicação irracionalizável que sustenta a superioridade do fato, seja pela alegação da experiência do trágico, seja pela sua argumentação intersubjetiva indizível, incomprovável -- desesperada; pois não se trata aqui de comprovar, mas, talvez, no máximo, de demonstrar: em pasmo -- mostro-lhes minhas cartas, e vocês me mostram as suas. E me digam: se não é isto um fato? Talvez essa seja a primeira metafísica irracional, por isso tenha sido também chamada de filosofia da vida. Por quê, mesmo, se ela afirma a morte, assim, como um fato?... Os alemães não conseguiram explicar muito bem.

segunda-feira, 29 de abril de 2024

A sensação roxa e amarela tomou conta de mim. Eu juro que não sou bolsonarista. Mas... (o escritor cala-se, antevendo a efemeridade da sua crítica social). 

domingo, 28 de abril de 2024

materialismo abraâmico

 Mas, então, aprendemos. "Finalmente!" Ah, sim! É isso o que fazemos, aprendemos -- e não é? Mas e por que aprendemos? Porque -- queremos. Queremos, portanto. Então aprendemos, finalmente aprendemos que aprendemos e o fazemos porque queremos. De tal maneira isso se dá que, talvez, seja irrelevante o que aprendemos, uma vez que o objeto de nossa apreensão é condicionado pela nossa vontade. Nosso animal faminto come tudo em linha reta, para nutrir-se bem! Ad infinitum! E, se é assim, o céu é o limite! O céu, aquele céu, que toda a nossa tradição religiosa identificou como a origem do absoluto, acaba retornando às nossas divagações epistemológicas de modo reverso: pela força do nosso estômago, transformamos a necessidade no infinito. E fizemos isso por causa da nossa necessidade de infinito. Toco um objeto e percebo seu limite e me submeto a ele, mas lhe desejo diferente, então o transformo -- até que a morte nos separe. Então toco a morte... e a ultrapasso: logo... desfaz-se o objeto, na sua acepção... necessária? A morte, então, é o símbolo da metafísica da permanência, da metafísica como estrutura. E a vida? A vida deverá significar uma outra -- metafísica: esta, abraâmica, que toma de empréstimo a possibilidade plástica do voluntarismo de deus. Deus, este, que está morto, mas que, ao morrer, deixou, para nós, sua nova visão de mundo. Contra a metafísica do impossível, herdamos uma metafísica abraâmica, porém aplicada ao realismo. E, assim, fez-se revelar, pela obsevação interessada, o novo materialismo, contraposto ao materialismo da necessidade: o materialismo abraâmico.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

o sentido fisiológico da geografia

Pensar a geografia como um condicionante do comportamento, da maneira que fizeram Braudel e os seus antecessores da Escola dos Anais, continua sendo necessário. Parece inegável que, no transcurso do tempo, os povos se vejam tolhidos ou estimulados, por esse ou aquele impedimento natural, ou facilitador. As contingências que a natureza local exibe despertam nos sujeitos as suas reações de ganho, de acomodação. Mas o que se passa, dentro deles, para que tal ou tal impedimento signifique a sua ação? É nesse sentido que se torna necessário observar a geografia pelo prisma fisiológico: para entender o despertar, no sujeito, das reações a ela associadas. Subsidiariamente, esse desvelamento será útil para a compreensão do que constituiria, em fundamento, a cultura para os povos -- porque, assim, perceberemos que a cultura funciona geograficamente para a fisiologia.

segunda-feira, 1 de abril de 2024

significante servil

Pouco se vê, na prática, a diferença entre alguém livre e alguém que não é. Esconder a escravidão é o primeiro desejo do escravo, porque quer, ao menos, imaginar-se livre. Quem é escravo é sempre escravo de alguém, ainda que essa condição esteja abrigada pela estrutura do sistema. A escravidão se aprende ao longo da vida, ela aparenta ser uma escolha moral, mas é uma conscrição. Todos nós somos determinados pelos nossos inconscientes a realizar ações que imaginamos ser conscientes. Sob o véu da ética, acabamos vassalos; e, de vassalos para escravos, a distância é curta. Vassalos são escravos, e escravos deixam de ser escravos para serem vassalos, no máximo, porque o perigo de viver sem nenhuma proteção no mundo constrange os sujeitos livres em direito a buscar um apoio. E, como a propriedade é sempre privada, pelo menos até agora tem sido assim, dependemos da proteção, mesmo que quase no intangível, de alguém. Uma espécie de corporação substitui a corrente, e adotamos certa conduta moral ou outra por puro apreço ao modo de organização em que nascemos. Quebrar isso é muito difícil, e os perigos da vida mostram-nos bem. Os seres livres somente o são, porque também desprezam a proteção, então não se importam em pilhar. E, assim como um assaltante pode roubar uma pobre senhora trabalhadora, que pouco tem a oferecer, os escravos da mentalidade senhorial também sofrem os reveses de um retorno para casa em uma rua mal-iluminada, de serem afanados com sutileza, nesse mundo em que a liberdade e a servidão se misturam aos olhos não treinados. A servidão pode criar pessoas bem cuidadas em aparência, mas servas.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020