terça-feira, 4 de novembro de 2025

Eu: o anti-heidegger heideggeriano

O objetivo da aula é tentar pensar em um "páthos eidético" e na sua consecução.
Esse procedimento implica um olhar projetivo sobre o conceito de páthos; a ideia é tentar entender o seu direcionamento.
O que seria, então, o "espanto" filosófico? Só compreendemos ele por sua característica prática. Qual práxis, portanto, o "espanto" gerou? Pela sua afecção nos "sujeitos de filosofia" é que veremos onde ele vai dar na história.
Ao olharmos para trás, identificaremos o seu caminho. Identificando o seu caminho, identificamos aquilo que intenciona. Se o "espanrtno" afeta o sujeito enquanto "páthos", disposição, devemos procurar nessa disposição o caminho que ela tem de seguir. Esse caminho é que nos levará à certeza do que lea é. E por que precisamos saber o que ela é com certeza? Porque é essa disposição que enuncia sua busca, por meio de nós; e descobri-la é nosso ímpeto, para domá-la, conhecê-la e nos realizarmos plenamente.
Assim, se o espanto inicial causa iniquamente o páthos em diferentes sujeitos filosóficos, na sua conclusão, apenas as disposições ficarão lado a lado, e o relevo do ser nos será indiferente. Mas, para o relevo do ser apresentar-se-nos indiferente, ele deve ser neutralizado pela nossa disposição. Nossa disposição é, desse modo, uma pulsão que se bate contra o ser geográfico do espanto.
Nesse desejo de controle do ser, o páthos vai tateando e tateando-se. Chega a si mesmo, ao certitudo cartesiano. Lá encontrou o seu bedrock. Primeira certeza possível. O cogito não precisa ser o que Descartes entendeu por ele, apenas o ponto de partida.
Mas o ser emana outras certezas que não são autoevidentes, mas que são demonstráveis. Separando o joio do trigo, chegamos a elas pela demonstração e pela intersubjetividade. Elas são as ciências empíricas, que se nos dão a conhecer pela prática.
É somento de modo ativo que nos capacitamos a testar nossas hipóteses e afirmá-las. Embora seja apenas com o experimento que acedemos à certeza, ela nos aparece clara já pela razoabilidade e, às vezes, pela matemática.
Com a economia, é assim, mesmo que ela atue diretamente sobre a esfera protegida do cogito.
Podemos então demonstrar a forma como se opera a economia capitalista pelo modelo marxista de análise, e assim demonstrar a exploração. Mas estaremos capazes de fazer os indivíduos perceberem, por si mesmos, na forma como Descartes propõe o seu método, a situação de exploração? Ainda: perceber a exploração e tentar libertar-se dela, será isso o contato com ser, de que Heidegger fala?
A ideia de uma economia como direcionando o interesse das pessoas por meio do dinheiro pode ser um bom caminho para mostrar como o dinheiro significa a vontade das pessoas de forma alienada. O dinheiro é a objetificação das suas vontades, e os salários são as suas parcelas de vontade possíveis de serem alcançadas, no tempo que lhes restar de vida. 
O dinheiro, assim, é o trabalho social acumulado, ele é a sua imagem, e a sua quantidade é o máximo de realização possível contingentemente pelo trabalho.
A superação do dinheiro exporia, então, a humanidade às suas possibilidades objetivas, no nível do indeterminado.
Se o objetivo for, portanto, a conquista da certeza cartesiana de um ponto de vista materialista, deveremos ter de superar o dinheiro por meio do nosso próprio trabalho.
Se demonstramos a verdade da economia marxista, devemos, então, agir conforme ela para torná-la uma percepção subjetiva, vendo nos seus resultados a sua atuação completa.
O valor-trabalho é o que garante ao produtor a conquista da mais-valia. Mais-valia nada mais é do que o mais valor adicionado na operação de venda de mercadoria por dinheiro. D-M-D'.
O trabalho, essa dimensão ativa da vida humana, é a forma por meio da qual realizamos o aumento da riqueza.
Se pudermos trabalhar para nós mesmos... talvez possamos descobrir criticamente a existência da matéria. Reconhecer no trabalho a execução daquilo de que nos alienamos: isso é retornar à certitudo materialista cartesiana. 
Isso é fazer retornar a vontade à homeostase eidética -- é fazer alcançar a homeostase eidética que imaginamos ter existido em um Estado de Natureza.

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Soneto da última chance

Quero que fiques à vontade comigo,
de estar ao meu lado, não tenha medo;
não restem dúvidas do meu sincero zelo.
Saibas que, em mim, tens mais que um verdadeiro amigo.

É que seus gestos, brincando... não me convenço!
Envergonho-me de confessar-me-te tanto,
no teu vem-e-não vem, eu me acabo em pranto,
Retraio-me em cólera, no mais vil desprezo.

Liberta-te, meu homem! Faz-me teu: amante!
Eu te desejo muito, neste exato instante!

Mas, se não vens, eu me vou -- e te deixarei aí.
Fatídico dissabor, para ver-te ruir!

Sejas meu, ou te consideres meu rival:
Paixão e ódio: gêmeos do mundo sensorial.

A crítica do instante, o instante crítico e o elogio do divertimento agudo: a ópera como duração finita total

 A dicotomia entre o instante e o eterno na história do cosmos surpreende inexoravelmente todo sujeito que se põe a pensar sobre si, sobre tudo e sobre o que é que é -- e sobre o que é o que é. Ainda assim, na nossa ingênua percepção vivente, somos capazes de distinguir essas duas dimensões da essência das coisas, das suas duas paradoxalidades: o paradoxo do finito dentro do infinito e o do infinito dentro do finito. De toda forma, ainda que ambas as linhas de apreensão do possível sejam verdadeiras e ao mesmo tempo mutuamente e não mutuamente excludentes, o horizonte da morte nos condiciona a realizar uma escolha de como considerar o mundo: a velha escolha entre Sócrates e Sófocles, entre Atenas e o pessimismo trágico. Certamente, a escolha pelo instante é probabilisticamente mais interessante do ponto de vista racional, ainda que o seu prazer implique uma aceitação da dor como limite intransponível do caos. Já uma escolha pelo eterno, do ponto de vista existencial, que fique claro, implica uma outra dor, que pode parecer dupla, que é a dor do que Nietzsche chama de abnegação. O instantanismo puro, mesmo que pareça mais racional, se realizado em sua radicalidade, implica em uma possível disparidade progressiva de aproveitamentos vitais, que tem como consequência a desobrigação do outro pelo outro, reinstaurando um regime de liberdade nociva, motivo por que é muitas vezes elogiado como atributo da moral aristocrática, de matriz barbárica. A solução possível, portanto, seria a crítica do instante para se instaurar um instante crítico -- uma subversão do prazer pelo instante que demonstrasse no instante a sua dimensão horrenda, a criticasse e a sublasse em direção a uma criticidade renovada a cada novo evento de instante: como um exercício crítico. O grande peso dessa tarefa seria o mesmo peso atribuído a ela pelo grande filósofo alemão, Friedrich Nietzsche: o peso da ascese e da abnegação. O que eu proponho, todavia, é uma contrapartida pela crítica do instante na forma de um gozo do instante crítico. O que eu proponho, pois, é a possibilidade de um divertimento agudo na crítica do instante, na sua passagem pelo horror e pelo abjeto, identificados no gozo puro do instante. Do ponto de vista de um projeto total, mater-se-iam ambas as qualidades das duas considerações sobre o mundo: o gozo do instante e a perspectiva de um futuro eterno. Essa operação, que se esclareça bem, compreenderia uma espécie de esticamento do instante, na sua repetibilidade sempre reinstaurada, de forma a criar-se um percurso da crítica. O instante, assim, seria traduzido como duração mínima e decupado em micro operisticidades totais, em que a crítica do instante passaria por seus atos, até que se elevasse à crítica divertida do instante, instaurando-se o gozo pelo divertimento agudo: a inclusão do abjeto na dimensão do gozo seria esse duplo sopro, esse duplo soco do eterno sobre o instante, funcionando como um desafogamento aliviante da vitalidade cultivada -- e retesada -- pelo exercício da abnegação. O gozo do abjeto, esse divertimento agudo e crítico, como uma prática reiterada e constante, eventual e repetida, a todo instante, reinauguraria o instante como duração finita, evento por evento, traduzindo a instantaneidade em sua dimensão operística -- mas inaugurando, agora, também, um novo paradoxo: o paradoxo a duração alongada do instante, na perspectiva, na intenção da elaboração de um trabalho constante, orientado para um futuro em que a eternidade pudesse ser gozada materialmente, pois o instante seria assim ressignificado somente com a intenção de se desfrutar dos resultados positivos da sua crítica perpétua -- ou perpétua até que se supere a morte de tudo. E assim, somente assim, teria fim a macro ópera da duração total, circularizando o infinito em um finitude cósmica do possivelmente possível.

terça-feira, 7 de outubro de 2025

A equiparação do prazer e do alívio

- Fisiologia e medicina são exemplos de produção ingênua de informação material vital agregada. 
- É preciso pensar como a vivência pode ser cooptada. 
- O abjeto deve ser entendido como um divertimento agudo (exercício radical de liberdade). 
- Assumir o abjeto como divertimento é o impensado -- assim como o cosmismo é o impensado da tropicalia e vice-versa.

Hélio Oiticica de cabeça pra baixo

O que vem movendo o meu ímpeto artístico é a ideia de que eu viraria a obra do Hélio Oiticica de cabeça pra baixo. Antes, parecia-me suficiente simplesmente afirmar que "eu não era o Hélio Oiticica", em uma referência a Magritte. NOT OITICICA. Mas o desdobramento das minhas investigações chegaram ao ponto de transformar essa afirmação em uma reesculturação mental do trabalho do Hélio, que se concretizou na minha "Ópera da Redenção da Geometria", o meu "programa irônico", a minha crítica às Cosmococas -- o meu suplemento, complemento, alienado, desalienado. Botar o Hélio de cabeça pra baixo requereria, então, que eu questionasse, ou, ao menos,  elaborasse o seu conceito de "invenção", como capacidade e mandamento universais de expressão individual igualmente distribuídos entre todos. Mas o seu conceito de invenção pressupunha, era lógico, um domínio do inalcançável pela práxis crítica, que era o conceito de "vivência". A sua proposta de invenção como desdobramento do seu expressionismo cósmico trágico, se eu fosse botar o Hélio Oiticica de cabeça pra baixo, deveria ser, no mínimo, complexificada, uma vez que meu entendimento do Neo-concretismo e do Neo-expressionismo era de que se tratava de "momentos vitais" do descobrimento do ser material. Um momento da ontologia final e única que tinha na sua conclusão absurdo-factível o melhor dos mundo possíveis pós-leibniziano -- o meu  melhor dos mundos possíveis, aquele do cosmismo abrasileirado, do cosmismo do excesso, da Trop Arte (essa arte do excesso tropical, momento elevado da alienação pela vivência, como disponibilização de material mensagístico para incorporação no edifício cósmico a ser posteriormente refuncionalizado). A função da vivência oiticiciana era dupla: era gozo e entrega, era prazer e tragédia, era vida e cooptação. Virando Hélio Oiticica de cabeça pra baixo, eu deveria seguir um caminho diferente, embora não totalmente distinto. Se a vivência era um momento ingênuo da produção do gozo eterno, eu deveria representar o seu momento crítico. O excesso trágico deveria ser trabalhado para preencher de excesso positivo a vivência socrática, mas, para chegar lá, o momento crítico deveria produzir o seu duplo. E o duplo do gozo trágico, eu imaginei, é a crítica abjeta, é a representação crítica da alienação do gozo, da cooptação -- é uma investigação intelectual radical dos motivos fundacionais dos descontentamentos, é a denúncia livre e incensurada do horror como uma batalha cósmica da vida contra a morte em todo sujeito vivente. É um cuspe. Se cada instante deve ser uma obra de arte para tornar-se eterno, como Hélio vislumbra que se seja a sua invencionalidade expressiva, a sua ode ao instante do cosmo, esse mesmo instante, para tornar-se eterno, deve inscrever-se como uma totalidade desejante, libertando-se do seu negativo por meio da expressão abjeta, deve ser uma Obra de Arte Total, com todos os seus momentos até o final do seu progress, na redenção. Speak-out, Revolução Cultural, Bota-fora: como quiserem chamar, o circuito ascendente da expressão abjeta até o seu delírio findo é a contra-parte da invenção enquanto expressionismo encantado. Se a invenção e a criação vivente são apropriadas constantemente pelo dinheiro que tudo compra, a revanche da exploração é a expressão abjeta -- mas, para que ela se torne o veículo de uma futura "vivência socrática", ela deve ser conceitualizada pela práxis hermenêutica, e tornar-se um abjetismo conceitual. Ou então continuaremos a vivência ingênua e ignoraremos os males advindos dessa percepção que, justamente, ignora -- e cultua o trágico. Ou então acreditaremos no "programa irônico do duplo abjeto-vivente" em sua proposicionalidade delirante de gritos e gozos espiralantes e apologéticos e recalcitrantes e desesperados -- porém o único melhor possível e libertado do fati nietzscheano.

terça-feira, 23 de setembro de 2025

ironia e niilismo ou o melhor dos mundos possíveis

 Agora, se compreendermos de fato que, no fundo da disputa entre Oiticica e Malevich, jaz um mesmo problema, que opõe as duas "soluções cósmicas", então teremos que uma nova e única arte é um "programa irônico". E, nesse sentido, haveremos de sucumbir praticamente: isto é, aceitaremos ambas as potencialidades negativas das opções actantes -- assim como louvaremos suas "identidades programáticas" -- e cairemos no erro permanente da vida como afirmação da morte. As soluções cósmicas propostas, portanto, são, igualmente, ou mutuamente excludentes ou suplementares-complementares e apenas justificam-se enquanto afirmação absurdo-factível: afirmam-se como proposição única e lógica, até mesmo ética, do problema cósmico fundamental, que é a afirmação da vida. O que defendo, assim, é que a ironia implícita no absurdo da demonstração finalíssima da solução cósmica única, nova e conclusiva pressupõe um niilismo de base, a que corresponde a nova acepção do "melhor dos mundos possíveis". Nesse novo "programa absurdo finalizante" (que seria in progress meramente circunstancialmente), o "melhor dos mundos possíveis" é o único horizonte ético que se vislumbra, ainda que sua execução pareça impossível, e que a escolha entre as duas "soluções cósmicas" figure como uma necessidade. A transposição dessa impossibilidade como vislumbre -- "transposição como vislumbre" --, no limite, é o paradigma a que nos temos de agarrar, do contrário é niilismo puro e ironia. Ou é mesmo niilismo puro e ironia, e aí teremos de haver-nos com a face dura da relação entre ontologia e epistemologia, que nos convida a entender o contrário, pois, ao que se supõe provável do real nas atuais compreensões de realidade, a ontologia e a epistemologia encontram-se na verdade da matéria, ainda que se a expanda em sua complexidade telúrica, instantânea e mesmo infinita e eterna.

terça-feira, 16 de setembro de 2025

a nova e única arte

Se quisermos pensar em termos de continuidade, teremos de supor que o neoconcretismo e o conceitualismo de Moscou constituem suplementos um do outro, mas suplementos em um sentido linear e não em sentido substitutivo. Quero dizer, primeiro, então, que a noção de suplemento deve ser entendida como ela foi dicionarizada, não como ela foi apropriada no discurso da chamada "teoria francesa" da filosofia contemporânea. As descobertas do neoconcretismo, sobretudo aquelas feitas por Hélio Oiticica em suas investigações da cosmicidade da expressão, devem ser compreendidas como um "momento vital" da expansão progressiva da duração. Mais ainda, elas devem ser entendidas como "matéria complexificada", elementos de entendimento complexo da vida, na sua interface com o cosmos exterior. Os aspectos extasiantes que a vivência transporta para a arte devem servir de complemento, na verdade, à noção totalizante do conhecimento de que são legatários os conceitualistas de Moscou, como herdeiros da tradição construtivista e suprematista, malevichiana -- que, no fundo, são consequências do futurismo cosmista russo. Esse futurismo cosmista russo, então, é o esboço arquitetônico de um edifício, que sera preenchido pelas vivências, pelas durações, que são as expressões presentificadas das vidas, que, na prática, demonstram as necessidades das individualidades para que a experiência da imortalidade imanente seja de fato uma "experiência delirante extasiante". Se supusermos que o imortalismo corpóreo é uma possibilidade factível, ele deverá ter de ser um imortalismo corpóreo perpetuamente desejante e realizador, tornando a vida imortal imanente algo além de um tédio da eternidade. É por isso que argumento que a alienação e a vivência, como Hélio Oiticica compreendeu esse conceito, são fases, momentos da descoberta do si coletivamente. A própria dinâmica do capitalismo, da criação das necessidades, segue essa espécie de "dilema ético", ao produzir, pela apropriação do trabalho transistórico, as potencialidades de gozo exponencializados em verticalidade mortal. O desenvolvimento das forças produtivas talvez seja mesmo esse momento histórico da descoberta da potência, mas que seria sustado, uma vez que as forças produtivas todas fossem redirecionadas para uma produção condicionada por um outro regime ético de produção. Então o contato das individualidades com o cosmo, como é a intenção de Oiticica, poderia ocorrer de forma super-supra-sensorial. E nesse novo momento da produção caberá uma superação da forma trágica que se atribui à arte. Em um novo regime ético de produção, talvez se chegue a uma nova necessidade, que é a da superção da mortalidade, mas que não pode deixar de ter inscrita em sua intenção enquanto projeto coletivo a dimensão da vivência como condição de uma eternidade imanente vivente. É que supor uma vida imortal sem a possibilidade de uma criatividade infinita, de uma invencionalidade desfrutante, é indesejável; e, na verdade, se essas duas dimensões, a cosmista e a neoconcreta, não se fundirem, elas tornam-se mutuamente excludentes e, ainda, tornam-se ambas frustradas. A cosmista por seu tédio e por sua inviabilidade, que obrigaria o sujeito a optar por uma vivência oiticiciana, como último refúgio da arte. E a neoconcreta tornar-se-ia frustrada, porque a vivência seria recorrentemente apropriada pelo dinheiro, transferindo o seu gozo aos acumuladores de equivalente geral.

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

vivência e alienação

Pensando-se na totalidade do trabalho produzido historicamente, o usufruto do seu resultado pelos detentores do maior estoque de equivalente geral de troca (dinheiro) é uma função invertida da expropriação vital. A falta abstrata, que a despossessão de dinheiro representa, é a emulação da sua feição positiva, sendo a vivência expropriada uma necessidade econômica da geração material do seu produto-epítome: o gozo do dinheiro. Em sentido semelhante, o desenvolvimento geo-histórico das necessidades de vivência resulta em mensagens informacionais que acabam por ser resgatadas pela capacidade produtiva como possibilidade de realização de gozo, em abstrato. Como a estrutura de acumulação é piramidal e orientada para o futuro, aquilo de que o topo da pirâmide desfruta é o agregado socio-histórico das vivências circunstanciais tornadas mensagens de troca econômica. As possibilidades de vivência são expelidas de maneira passiva, ou melhor, são drenadas tacitamente pela dinâmica própria de expropriação vital que o regime de trocas pelo dinheiro produz. As subjetividades produzidas sob esse sistema de recompensas desbalanceado estão, a todo o tempo, argumentando silenciosa e inconscientemente pelo seu próprio desejo, sobretudo por causa da constatação da morte, âncora absoluta da materialidade vital. O ponto de vista subjetivo emerge como perceptor sensível do desbalanceio, assumindo os sentimentos uma dimensão eminente na sintomatologia do déficit vital. A forma abstrata da geração de valor que o sistema de trocas por um equivalente geral cria permite uma palpitação delirante das “necessidades de gozo”,  como uma "volubilidade crítica" que pode ser identificada e retrabalhada por qualquer dispositivo exterior que se proponha a cooptá-la. A vivência, em seu sentido trágico, portanto, é um “momento vital”, uma expressão do seu posterior desdobramento desalienado, que seria a vivência-constância, a vivência em seu “sentido socrático”.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Sobre a metáfora das Haciendas

O excepcionalismo brasileiro em relação aos seus vizinhos hispano-hablantes é vastamente contestado, por muitos sociólogos e intérpretes do Brasil. Além de criar uma falsa autoimagem para nós, de superioridade, ainda contribui para certa inflação das características nacionais e culturais sobre o ordenamento da sociedade. Essa visão perdeu muita força explicativa sobre os determinantes do caráter das sociedades, desde que se compreendeu a força exercida pelo capital na história da estruturação de um país. Quando Oswald de Andrade e, mais tarde, Glauber Rocha apelidaram o Brasil de El Dorado, não foi sem razão suficiente. A proposta de generalização ou de universalização da experiência colonial e decolonial latinoamericana segue uma orientação epistemológica que tem bases bem identificáveis na experiência do continente. El Dorado deu errado, tanto para Oswald quanto para Glauber. O Brasil e a América Latina são parte e todo, segundo essa perspectiva; e podemos elaborar essa estratégia metafórica para cunharmos um segundo pseudônimo para a nossa experiência colonial: o termo hacienda

Para os pouco familiarizados com o termo, hacienda refere-se ao tipo de instituição econômica colonial imposta ao território colonizado pelos espanhóis. Apesar de não serem exatamente como os engenhos, as haciendas eram-lhe muito semelhantes, ainda que se procure distinguir o nosso hegelianismo tropical até bem recentemente. Em linhas gerais, as haciendas eram essas grandes fazendas criadas pelos colonizadores espanhóis para exploração dos recursos naturais da região, seguindo um modelo de dominação colonial que o capitalismo tratará de fazer-nos a nós, brasileiros, identificar igualmente com ele, se eu bem conseguir fazer-me entender. As forças do capital, nas sociedades colonizadas, tendem a hierarquizar as pessoas de maneira semelhante à que se fazia nas haciendas, piramidalizando as relações, de forma que o seu topo siga um sentido, que é sempreo da entrega dos fluxos monetários para as economias desenvolvidas, ainda que ofereça um requinte de crueldade no fato de a dominação ser terceirizada para as elites locais.

Façamos, então, uma explicação do funcionamento das haciendas. Deveremos, para isso, pois, fazer uma breve reconstituição histórica da sua formação. As haciendas foram a solução criada pela corôa espanhola para o problema da decadência das minas de metais preciosos. Elas são, assim, um desdobramento das encomiendas, que foram a primeira forma de enraizamento das populações espanholas no continente americano. Enquanto aquelas já possuíam um sentido de produção diretamente ligado à monocultura, como nos engenhos, estas surgiram para alimentar de insumos necessários as minas dos Andes e do México. Embora não fossem assentadas em trabalho declaradamente escravo, como as minas, as encomiendas acabavam por escravizar a sua clientela por dívidas. 

O regime de dominação exercia-se pelo recolhimento de impostos, que deveriam ser entregues ao encomendero. O encomendero era um cidadão espanhol, assentado como autoridade da porção de terra que lhe fora designada, cuja obrigação era o recolhimento dos impostos e a organização da produção para o abastecimento das cidades mineiras. Deu-se, então, a primeira monetarização da colônia. Deu-se, também, uma reorganização da produção, tanto pela mencionada monetarização, quanto pelo direcionamento do produto para a venda nas cidades. A estrutura social prévia, contudo, "permanecia a mesma". A única diferença era que, acima das lideranças locais, introduzia-se o elemento espanhol, o novo chefe, pervertendo, por sua natureza exógena e exploratória, a eficácia cultural daquele sistema -- mas isso é um subproduto colonial: aquilo de que queremos tratar é da formação da elite crioula, nesse período, que depois estará no centro das relações sociais quando da instituição das haciendas como substituto das primeiras formas de colonização econômica.


quarta-feira, 23 de julho de 2025

O Sentido dos Sentimentos

É certamente mais interessante, embora menos usual, que entendamos os nossos sentimentos, em sua natureza, por meio do sentido posterior que eles tendem a produzir. Se nos perguntamos "por que sentimos raiva?", uma resposta mais eficiente estará relacionada ao sentido final que ela assume. A pergunta deveria ser reformulada para: "sentimos raiva por quê?". Com o caso da raiva, para tirarmos como exemplo, uma resposta possível para essa segunda pergunta seria: para resolver um conflito gerado por algo que nos desagradou. Não precisaríamos, para entender a sua natureza, recorrer aos acontecimentos causadores da raiva, ou ao porquê de aquilo ter causado raiva naquela pessoa, especificamente. Convém responder apenas à pergunta do sentido dos sentimentos. Sendo, assim, capazes, retroativamente, de responder, consecutivamente, às causas do sentimento, veremos que os sentimos para algum objetivo psíquico, se ponderarmos bem: entenderemos o seu significado. As causas, desse modo, explicam-se por seus objetivos. O que é o mesmo que dizer que, se algo antes causou, por exemplo, a raiva, terá sido porque aquilo provocou a raiva por causa do desagrado que gerou, sendo, logo, o sentido dos sentimentos o alívio do desagrado. Torna-se desnecessário pensarmos, por exemplo, na influência dos signos historicamente constituídos sobre o objetivo daquilo que sentimos; ou na falta de precisão fenomenológica dos símbolos linguísticos na elaboração dos sentimentos; ou na impossibilidade de compreender o mundo em termos "isentos". Os recursos simbólicos são, segundo essa abordagem, produtos desses objetivos sentimentais, representando algo mais como instâncias históricas do seu sentido, do que enigmas ou uma realidade paralela ao ser ou mesmo ao ser fenomenologicamente possível, ao ente. Não seríamos, então, a partir disso, mais propriamente aptos a estabelecer alguns alicerces para a construção de uma metodologia sócio-histórica total? Nos moldes do pensado pela escola dos Annales, estaríamos, dessa forma, refinando o seu escopo economicista, para uma compreensão da materialidade histórica da ação humana no seu ponto de vista subjetivo intencional, complexo.