Fisiologia e medicina como exemplos de produção ingênua de informação material vital agregada. Pensar como a vivência pode ser cooptada. O abjeto como divertimento agudo (exercício radical de liberdade). Abjeto divertido como impensado -- cosmismo como impensado pela tropicalia.
terça-feira, 7 de outubro de 2025
Hélio Oiticica de cabeça pra baixo
O que vem movendo o meu ímpeto artístico é a ideia de que eu viraria a obra do Hélio Oiticica de cabeça pra baixo. Antes, parecia-me suficiente simplesmente afirmar que "eu não era o Hélio Oiticica", em uma referência a Magritte. NOT OITICICA. Mas o desdobramento das minhas investigações chegaram ao ponto de transformar essa afirmação em uma reesculturação mental do trabalho do Hélio, que se concretizou na minha "Ópera da Redenção da Geometria", o meu "programa irônico", a minha crítica às Cosmococas -- o meu suplemento, complemento, alienado, desalienado. Botar o Hélio de cabeça pra baixo requereria, então, que eu questionasse, ou, ao menos, elaborasse o seu conceito de "invenção", como capacidade e mandamento universais de expressão individual igualmente distribuídos entre todos. Mas o seu conceito de invenção pressupunha, era lógico, um domínio do inalcançável pela práxis crítica, que era o conceito de "vivência". A sua proposta de invenção como desdobramento do seu expressionismo cósmico trágico, se eu fosse botar o Hélio Oiticica de cabeça pra baixo, deveria ser, no mínimo, complexificada, uma vez que meu entendimento do Neo-concretismo e do Neo-expressionismo era de que se tratava de "momentos vitais" do descobrimento do ser material. Um momento da ontologia final e única que tinha na sua conclusão absurdo-factível o melhor dos mundo possíveis pós-leibniziano -- o meu melhor dos mundos possíveis, aquele do cosmismo abrasileirado, do cosmismo do excesso, da Trop Arte (essa arte do excesso tropical, momento elevado da alienação pela vivência, como disponibilização de material mensagístico para incorporação no edifício cósmico a ser posteriormente refuncionalizado). A função da vivência oiticiciana era dupla: era gozo e entrega, era prazer e tragédia, era vida e cooptação. Virando Hélio Oiticica de cabeça pra baixo, eu deveria seguir um caminho diferente, embora não totalmente distinto. Se a vivência era um momento ingênuo da produção do gozo eterno, eu deveria representar o seu momento crítico. O excesso trágico deveria ser trabalhado para preencher de excesso positivo a vivência socrática, mas, para chegar lá, o momento crítico deveria produzir o seu duplo. E o duplo do gozo trágico, eu imaginei, é a crítica abjeta, é a representação crítica da alienação do gozo, da cooptação -- é uma investigação intelectual radical dos motivos fundacionais dos descontentamentos, é a denúncia livre e incensurada do horror como uma batalha cósmica da vida contra a morte em todo sujeito vivente. É um cuspe. Se cada instante deve ser uma obra de arte para tornar-se eterno, como Hélio vislumbra que se seja a sua invencionalidade expressiva, a sua ode ao instante do cosmo, esse mesmo instante, para tornar-se eterno, deve inscrever-se como uma totalidade desejante, libertando-se do seu negativo por meio da expressão abjeta, deve ser uma Obra de Arte Total, com todos os seus momentos até o final do seu progress, na redenção. Speak-out, Revolução Cultural, Bota-fora: como quiserem chamar, o circuito ascendente da expressão abjeta até o seu delírio findo é a contra-parte da invenção enquanto expressionismo encantado. Se a invenção e a criação vivente são apropriadas constantemente pelo dinheiro que tudo compra, a revanche da exploração é a expressão abjeta -- mas, para que ela se torne o veículo de uma futura "vivência socrática", ela deve ser conceitualizada pela práxis hermenêutica, e tornar-se um abjetismo conceitual. Ou então continuaremos a vivência ingênua e ignoraremos os males advindos dessa percepção que, justamente, ignora -- e cultua o trágico. Ou então acreditaremos no "programa irônico do duplo abjeto-vivente" em sua proposicionalidade delirante de gritos e gozos espiralantes e apologéticos e recalcitrantes e desesperados -- porém o único melhor possível e libertado do fati nietzscheano.
terça-feira, 23 de setembro de 2025
ironia e niilismo ou o melhor dos mundos possíveis
Agora, se compreendermos de fato que, no fundo da disputa entre Oiticica e Malevich, jaz um mesmo problema, que opõe as duas "soluções cósmicas", então teremos que uma nova e única arte é um "programa irônico". E, nesse sentido, haveremos de sucumbir praticamente: isto é, aceitaremos ambas as potencialidades negativas das opções actantes -- assim como louvaremos suas "identidades programáticas" -- e cairemos no erro permanente da vida como afirmação da morte. As soluções cósmicas propostas, portanto, são, igualmente, ou mutuamente excludentes ou suplementares-complementares e apenas justificam-se enquanto afirmação absurdo-factível: afirmam-se como proposição única e lógica, até mesmo ética, do problema cósmico fundamental, que é a afirmação da vida. O que defendo, assim, é que a ironia implícita no absurdo da demonstração finalíssima da solução cósmica única, nova e conclusiva pressupõe um niilismo de base, a que corresponde a nova acepção do "melhor dos mundos possíveis". Nesse novo "programa absurdo finalizante" (que seria in progress meramente circunstancialmente), o "melhor dos mundos possíveis" é o único horizonte ético que se vislumbra, ainda que sua execução pareça impossível, e que a escolha entre as duas "soluções cósmicas" figure como uma necessidade. A transposição dessa impossibilidade como vislumbre -- "transposição como vislumbre" --, no limite, é o paradigma a que nos temos de agarrar, do contrário é niilismo puro e ironia. Ou é mesmo niilismo puro e ironia, e aí teremos de haver-nos com a face dura da relação entre ontologia e epistemologia, que nos convida a entender o contrário, pois, ao que se supõe provável do real nas atuais compreensões de realidade, a ontologia e a epistemologia encontram-se na verdade da matéria, ainda que se a expanda em sua complexidade telúrica, instantânea e mesmo infinita e eterna.
terça-feira, 16 de setembro de 2025
a nova e única arte
Se quisermos pensar em termos de continuidade, teremos de supor que o neoconcretismo e o conceitualismo de Moscou constituem suplementos um do outro, mas suplementos em um sentido linear e não em sentido substitutivo. Quero dizer, primeiro, então, que a noção de suplemento deve ser entendida como ela foi dicionarizada, não como ela foi apropriada no discurso da chamada "teoria francesa" da filosofia contemporânea. As descobertas do neoconcretismo, sobretudo aquelas feitas por Hélio Oiticica em suas investigações da cosmicidade da expressão, devem ser compreendidas como um "momento vital" da expansão progressiva da duração. Mais ainda, elas devem ser entendidas como "matéria complexificada", elementos de entendimento complexo da vida, na sua interface com o cosmos exterior. Os aspectos extasiantes que a vivência transporta para a arte devem servir de complemento, na verdade, à noção totalizante do conhecimento de que são legatários os conceitualistas de Moscou, como herdeiros da tradição construtivista e suprematista, malevichiana -- que, no fundo, são consequências do futurismo cosmista russo. Esse futurismo cosmista russo, então, é o esboço arquitetônico de um edifício, que sera preenchido pelas vivências, pelas durações, que são as expressões presentificadas das vidas, que, na prática, demonstram as necessidades das individualidades para que a experiência da imortalidade imanente seja de fato uma "experiência delirante extasiante". Se supusermos que o imortalismo corpóreo é uma possibilidade factível, ele deverá ter de ser um imortalismo corpóreo perpetuamente desejante e realizador, tornando a vida imortal imanente algo além de um tédio da eternidade. É por isso que argumento que a alienação e a vivência, como Hélio Oiticica compreendeu esse conceito, são fases, momentos da descoberta do si coletivamente. A própria dinâmica do capitalismo, da criação das necessidades, segue essa espécie de "dilema ético", ao produzir, pela apropriação do trabalho transistórico, as potencialidades de gozo exponencializados em verticalidade mortal. O desenvolvimento das forças produtivas talvez seja mesmo esse momento histórico da descoberta da potência, mas que seria sustado, uma vez que as forças produtivas todas fossem redirecionadas para uma produção condicionada por um outro regime ético de produção. Então o contato das individualidades com o cosmo, como é a intenção de Oiticica, poderia ocorrer de forma super-supra-sensorial. E nesse novo momento da produção caberá uma superação da forma trágica que se atribui à arte. Em um novo regime ético de produção, talvez se chegue a uma nova necessidade, que é a da superção da mortalidade, mas que não pode deixar de ter inscrita em sua intenção enquanto projeto coletivo a dimensão da vivência como condição de uma eternidade imanente vivente. É que supor uma vida imortal sem a possibilidade de uma criatividade infinita, de uma invencionalidade desfrutante, é indesejável; e, na verdade, se essas duas dimensões, a cosmista e a neoconcreta, não se fundirem, elas tornam-se mutuamente excludentes e, ainda, tornam-se ambas frustradas. A cosmista por seu tédio e por sua inviabilidade, que obrigaria o sujeito a optar por uma vivência oiticiciana, como último refúgio da arte. E a neoconcreta tornar-se-ia frustrada, porque a vivência seria recorrentemente apropriada pelo dinheiro, transferindo o seu gozo aos acumuladores de equivalente geral.
segunda-feira, 8 de setembro de 2025
vivência e alienação
Pensando-se na totalidade do trabalho produzido
historicamente, o usufruto do seu resultado pelos detentores do maior estoque
de equivalente geral de troca (dinheiro) é uma função invertida da expropriação
vital. A falta abstrata, que a despossessão de dinheiro representa, é a emulação da sua feição positiva, sendo a
vivência expropriada uma necessidade econômica da geração material do seu
produto-epítome: o gozo do dinheiro. Em sentido semelhante, o desenvolvimento geo-histórico das necessidades de vivência resulta em mensagens
informacionais que acabam por ser resgatadas pela capacidade produtiva como possibilidade
de realização de gozo, em abstrato. Como
a estrutura de acumulação é piramidal e orientada para o futuro, aquilo de que o topo da pirâmide
desfruta é o agregado socio-histórico das vivências circunstanciais tornadas mensagens de troca econômica.
As possibilidades de vivência são expelidas de maneira passiva, ou
melhor, são drenadas tacitamente pela dinâmica própria de expropriação vital
que o regime de trocas pelo dinheiro produz. As subjetividades produzidas sob
esse sistema de recompensas desbalanceado estão, a todo o tempo, argumentando silenciosa e inconscientemente pelo seu próprio desejo, sobretudo por causa da constatação da morte, âncora absoluta da materialidade vital. O ponto de vista subjetivo emerge
como perceptor sensível do
desbalanceio, assumindo os sentimentos uma dimensão eminente na sintomatologia do déficit vital. A forma abstrata da geração de valor que o sistema
de trocas por um equivalente geral cria permite uma palpitação delirante das “necessidades
de gozo”, como uma "volubilidade crítica" que pode ser identificada e retrabalhada por qualquer dispositivo
exterior que se proponha a cooptá-la. A vivência, em seu sentido
trágico, portanto, é um “momento vital”, uma expressão do seu posterior desdobramento
desalienado, que seria a vivência-constância, a vivência em seu “sentido
socrático”.
sexta-feira, 25 de julho de 2025
Sobre a metáfora das Haciendas
O excepcionalismo brasileiro em relação aos seus vizinhos hispano-hablantes é vastamente contestado, por muitos sociólogos e intérpretes do Brasil. Além de criar uma falsa autoimagem para nós, de superioridade, ainda contribui para certa inflação das características nacionais e culturais sobre o ordenamento da sociedade. Essa visão perdeu muita força explicativa sobre os determinantes do caráter das sociedades, desde que se compreendeu a força exercida pelo capital na história da estruturação de um país. Quando Oswald de Andrade e, mais tarde, Glauber Rocha apelidaram o Brasil de El Dorado, não foi sem razão suficiente. A proposta de generalização ou de universalização da experiência colonial e decolonial latinoamericana segue uma orientação epistemológica que tem bases bem identificáveis na experiência do continente. El Dorado deu errado, tanto para Oswald quanto para Glauber. O Brasil e a América Latina são parte e todo, segundo essa perspectiva; e podemos elaborar essa estratégia metafórica para cunharmos um segundo pseudônimo para a nossa experiência colonial: o termo hacienda.
Para os pouco familiarizados com o termo, hacienda refere-se ao tipo de instituição econômica colonial imposta ao território colonizado pelos espanhóis. Apesar de não serem exatamente como os engenhos, as haciendas eram-lhe muito semelhantes, ainda que se procure distinguir o nosso hegelianismo tropical até bem recentemente. Em linhas gerais, as haciendas eram essas grandes fazendas criadas pelos colonizadores espanhóis para exploração dos recursos naturais da região, seguindo um modelo de dominação colonial que o capitalismo tratará de fazer-nos a nós, brasileiros, identificar igualmente com ele, se eu bem conseguir fazer-me entender. As forças do capital, nas sociedades colonizadas, tendem a hierarquizar as pessoas de maneira semelhante à que se fazia nas haciendas, piramidalizando as relações, de forma que o seu topo siga um sentido, que é sempreo da entrega dos fluxos monetários para as economias desenvolvidas, ainda que ofereça um requinte de crueldade no fato de a dominação ser terceirizada para as elites locais.
Façamos, então, uma explicação do funcionamento das haciendas. Deveremos, para isso, pois, fazer uma breve reconstituição histórica da sua formação. As haciendas foram a solução criada pela corôa espanhola para o problema da decadência das minas de metais preciosos. Elas são, assim, um desdobramento das encomiendas, que foram a primeira forma de enraizamento das populações espanholas no continente americano. Enquanto aquelas já possuíam um sentido de produção diretamente ligado à monocultura, como nos engenhos, estas surgiram para alimentar de insumos necessários as minas dos Andes e do México. Embora não fossem assentadas em trabalho declaradamente escravo, como as minas, as encomiendas acabavam por escravizar a sua clientela por dívidas.
O regime de dominação exercia-se pelo recolhimento de impostos, que deveriam ser entregues ao encomendero. O encomendero era um cidadão espanhol, assentado como autoridade da porção de terra que lhe fora designada, cuja obrigação era o recolhimento dos impostos e a organização da produção para o abastecimento das cidades mineiras. Deu-se, então, a primeira monetarização da colônia. Deu-se, também, uma reorganização da produção, tanto pela mencionada monetarização, quanto pelo direcionamento do produto para a venda nas cidades. A estrutura social prévia, contudo, "permanecia a mesma". A única diferença era que, acima das lideranças locais, introduzia-se o elemento espanhol, o novo chefe, pervertendo, por sua natureza exógena e exploratória, a eficácia cultural daquele sistema -- mas isso é um subproduto colonial: aquilo de que queremos tratar é da formação da elite crioula, nesse período, que depois estará no centro das relações sociais quando da instituição das haciendas como substituto das primeiras formas de colonização econômica.
quarta-feira, 23 de julho de 2025
O Sentido dos Sentimentos
É certamente mais
interessante, embora menos usual, que entendamos os nossos sentimentos, em sua
natureza, por meio do sentido posterior que eles tendem a produzir. Se nos
perguntamos "por que sentimos raiva?", uma resposta mais eficiente
estará relacionada ao sentido final que ela assume. A pergunta deveria ser
reformulada para: "sentimos raiva por quê?". Com o caso da raiva,
para tirarmos como exemplo, uma resposta possível para essa segunda pergunta
seria: para resolver um conflito gerado por algo que nos desagradou. Não
precisaríamos, para entender a sua natureza, recorrer aos acontecimentos
causadores da raiva, ou ao porquê de aquilo ter causado raiva naquela pessoa,
especificamente. Convém responder apenas à pergunta do sentido dos sentimentos.
Sendo, assim, capazes, retroativamente, de responder, consecutivamente, às
causas do sentimento, veremos que os sentimos para algum objetivo
psíquico, se ponderarmos bem: entenderemos o seu significado. As causas, desse modo, explicam-se por seus
objetivos. O que é o mesmo que dizer que, se algo antes causou, por exemplo, a
raiva, terá sido porque aquilo provocou a raiva por causa
do desagrado que gerou, sendo, logo, o sentido dos sentimentos o
alívio do desagrado. Torna-se desnecessário pensarmos, por exemplo, na
influência dos signos historicamente constituídos sobre o objetivo daquilo que
sentimos; ou na falta de precisão fenomenológica dos símbolos linguísticos na
elaboração dos sentimentos; ou na impossibilidade de compreender o mundo em
termos "isentos". Os recursos simbólicos são, segundo essa abordagem,
produtos desses objetivos sentimentais, representando algo mais como instâncias
históricas do seu sentido, do que enigmas ou uma realidade paralela ao ser ou
mesmo ao ser fenomenologicamente possível, ao ente. Não seríamos, então, a
partir disso, mais propriamente aptos a estabelecer alguns alicerces para a
construção de uma metodologia sócio-histórica total? Nos moldes do pensado pela
escola dos Annales, estaríamos, dessa forma, refinando o seu escopo
economicista, para uma compreensão da materialidade histórica da ação humana no
seu ponto de vista subjetivo intencional, complexo.
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