terça-feira, 26 de março de 2019

Aristocratismo à brasileira

Dado o atual estado das coisas, é de primeira importância que se analisem as fundações do que vou chamar de um aristocratismo à brasileira. De início, faz-se necessário que se tenha em mente o aspecto colonial em que esse fenômeno começou a ser gestado, desde suas bases culturais: no seio das famílias portuguesas colonizadoras, nas barbas de um senhor de engenho. É sabido que no Brasil nunca houve tal coisa como um privilégio de nascimento strictu sensu. Os senhores que aqui se estabeleceram enquanto tais não pertenciam a nenhuma alta nobreza, talvez nem a uma segunda nobreza, tendo vindo parar por aqui, na Bahia, no Rio, em Pernambuco, justamente para procurarem um enobrecimento por meio de uma empresa colonial, em busca de mercês e de riqueza, que os engenhos lhes proporcionariam. É sabido também que nenhum -- talvez algum -- jamais logrou êxito nesse intento de penetrar a alta nobreza portuguesa; e, no entanto, jamais, tampouco, esses senhores abandonaram a lógica cortesã, ainda que com aspectos coloniais, justamente por estarem incluídos em um sistema político-social, o Antigo Regime nos trópicos, de que não se podiam desvencilhar por força das circunstâncias da época. A empresa da cana, por sua vez, não era exatamente a atividade econômica da maior estabilidade. Esse senhor, portanto, talvez pelas palpitações dos preços de seu produto, estava exposto a toda sorte de volubilidade que os naufrágios e decolagens de sua ocupação podiam conferir-lhe, mesmo no seu caráter. O passar das gerações dispôs sobre o território defendido por esses senhores uma vasta gama de parentes empobrecidos e enriquecidos, empobrecendo e enriquecendo; pessoas que dependiam de sua proteção, tanto quanto ele dependia de protegê-las, para que pudesse confirmar-se enquanto senhor da terra diante desses algo súditos, e para que pudesse, aos olhos da corôa, ser visto como um bom servidor dos interesses reais. Pessoas também que poderiam vir a protegê-lo pelas mesmas razões, caso seu ramo familiar fosse assolado pela derrocada, o que adicionava responsabilidade e atenção a esse tipo de relação, se quisermos, política. Assim, o aspecto buarquiano e freyriano do colonizador português parecia quase que aflorar em maior intensidade, em maior cordialidade na vivência tropical, posto que a instabilidade, somada ao passar dos séculos, dava aos herdeiros dos patrimônios das famílias uma noção bem mais complexa do que seria o ideal de governança: muito mais aproximados eles seriam da necessidade daqueles que estão à sua volta, uma vez que os empobrecidos podiam ser seus primos pobres, condição que eles próprios poderiam vir a ocupar, caso o infortúnio se lhes abatesse. Este talvez seja o sentido do aspecto aconchegante mas opaco de uma decoração colonial brasileira, o aspecto apenumbrado e cálido dos móveis coloniais e do conhecido rococó mineiro ou bahiano, da ostentação caseira de uma tradicional casa brasileira. A ameaça da decadência, na medida em que aproximava os senhores bem-sucedidos dos mais pobres por motivo de endogenia cortesã combinada com falta de privilégio de nascimento e com assentamento da nobreza por meio de atividade econômica passiva de empobrecimento, também era elemento a partir do qual o indivíduo que buscava enobrecer-se na colônia deveria pautar seu exercício de educação sentimental cortesã, sua, digamos, etiqueta política, social, até estética. A decadência final do engenho de cana, que resultou na decadência final do ciclo do ouro, que resultou na decadência final da sociedade aristocrática bragantina com a Proclamação da República representam os pontos culminantes, típicos e ideais, de um processo transistórico que começava a florescer em aspectos culturais dos mais elaborados, conforme a corte se exercitava em sociabilidade, sob a aura de uma mais verossímil cultura brasileira. É próprio de uma sociedade de corte que os indivíduos busquem atividades nos mais elevados níveis da hierarquia de valores, assim como buscam aí objetos de contemplação estética. A formação, finalmente, de uma sociedade de corte brasileira a partir da independência foi responsável por aprimorar essa lógica aristocratista à brasileira, uma vez que nem nessa corte, agora verdadeiramente implementada, se podiam ter títulos de nobreza que não fossem concedidos por mérito pelo Imperador tropical! A pauperização iminente, ainda que relativa, principalmente dos setores deprimidos da nossa economia, não impedia a formação de uma nobreza, sui generis, aproximada de sua parentela, mas nem por isso menos dela distinta, até por seus valores de convivialidade abrasileirados por uma prática sado-masoquista que Gilberto Freyre nenhum poderia botar defeito. O efeito de tudo isso talvez tenha sido sentido na tendência republicana da nossa aristocracia, no liberalismo da guarda nacional, mas também no aristocratismo do nosso sentimento republicano, sendo exemplar na transformação súbita dos chamados Republicanos de Última Hora -- e já se podia sentir no ressentimento dos brasileiros com os portugueses, que derivou na Noite das Garrafadas; nos liberais com escravos; nos abolicionistas como Nabuco: e continuaram a ser sentidos na virada estética pré-modernista e modernista, quando da transposição da sociedade dessa realidade rural cortesã típica do Brasil para a realidade urbana, onde os trabalhadores se viram contemplados por esse olhar bonômico de uma ex-aristocracia desejosa de um novo tutelar que fosse ao encontro do seu ethos brasileiro mais essencial. Esta talvez seja a motivação transistórica mais própria do que culminou naquilo que foi o Modernismo Brasileiro e na sua relação ambígua com o que se chama de "oligarquias dissidentes" ou "decadentes" e no governo que resultou do movimento político que elas capitanearam na tomada do poder na ocasião da nossa primeira modernização conservadora.