sábado, 2 de maio de 2020

o Brasil como cultura e como política

As sucessivas retomadas da prática da Revolução de Avis, como Faoro classificou o processo de renovações pontuais e recorrentes do estamento burocrático em Portugal e, depois, no Brasil, acabaram impondo, ao longo da história, um sentido específico ao tipo de educação cívica que os candidatos à governança deveriam perseguir. A sempre renovada defesa do poder reinol, em seu pacto sucessivo com classes mais abaixo daquelas que o rei havia feito ascender na última "retomada de Avis", transfigurava-se, por assim dizer, progressivamente, para uma lapidação mais profunda dos ideais de boa-governança, se quisermos, aristotélica. Em aparência, o governo de Lisboa, do Rei, aprimorava o seu cuidado com o terceiro estado, até mesmo recrutando-o para o estamento, e criava um ideal de letramento de bacharelismo do tipo, digamos, "puro" -- um bacharelismo de elaboração da função do Estado propriamente dita. Na prática, esse novo ideal servia como uma capa que envolvia os súditos mais uma vez sob custódia do rei, calando-os, silenciando-os -- cada vez menos pela força, de cujo uso não se abria mão, e cada vez mais pela retórica nacional e popular, que tornava indizíveis determinadas críticas de cunho mais regionalista, centrifugista, das nobrezas da terra. Essa força do centro e do cetro era tão forte, e suas estruturas administrativas e políticas eram tão bem construídas, que, mesmo as chamadas forças centrífugas da composição do mando acabavam tendo de se virar ao centro para conseguirem o que necessitassem. E, como, para virar-se para o centro, uma mudança de oratória tinha de ser operacionalizada, a prática "separatista", o liberalismo radical, ou mesmo os anseios autonomistas tiveram de ser tresvalorados ao longo da história, até que se chegassem as suas necessidades políticas ao nível do legitimável do ponto de vista do centro -- um ponto de vista terceiro estadista, bonapartista, bragantino.

Estratégia de setores das elites autonomistas, o bacharelismo liberal do império, como transição para o republicanismo, que desembocará no aliancismo liberal, foi ainda um artifício emoliente de uma engrenagem que buscava hibridizar a própria cultura nacional, que já se desenhava, com os mandos e desmandos do nosso bragança particular e moderador, maquinagem que acabava fortalecendo o Estado burocrático centralizado e a unidade do território. A partir da proclamação da república, essa própria engrenagem passaria a se retroalimentar melhor, e mesmo as lideranças regionais passaram a articular esse ideal de governança, forjado, lá atrás, pelos desígnios dos Reis portugueses, para se legitimarem enquanto classe político-burocrática. De um centrufugismo regionalista, esboçou-se uma reação de caráter centralizador democrático, justamente para que se pudesse levar a cabo o bonapartista caráter do pacto Rei-terceiro estado, herança dos Avis, prática dos Bragança. Porque já se havia consolidado o bem-comum brasileiro no corpus da burocracia, ou melhor, porque o argumento do bem comum já havia penetrado o repertório filosófico da legitimação política, ao longo das gerações, mesmo que falseado por sofística, encharcando a cultura cívica e política brasileira dessa imagem bonômica de "suseranagem" do povo, surgiu esse estranho movimento varguista, de um pacto que carregava, paradoxalmente, o liberalismo em seu nome (a Aliança Liberal da Revolução de 30). E só assim se poderiam, à Bourdieu, distinguir, ambivalentemente, agora eles também, esses ex-federalistas, enquanto governantes: por um pacto in abstracto (o de sempre), com o sempre existente terceiro estado.