terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

liberal-senhorialismo na transição para a república

Temos essa estranha sensação quase duchampiana de que uma elite antiga guiou, no brasil, o processo de emancipação popular, desde a estética antropofágica, até a fundação do partido comunista brasileiro. Se essa sensação puder ser levada em conta como uma hipótese científica real, um exercício de procura desses vestígios no passado pode nos dar mais que uma explicação mítica para o fenômeno que essa minha sensação me transmite (imagino que transmita a meus interlocutores igualmente, do contrário este texto torna-se inútil). Como o método científico me é interditado pela força do ensaísmo, tentarei explicar meu pensamento, em um marxismo inovador, pautado em uma interpretação analógica daquilo que a crítica literária de Machado de Assis imputa aos conservadores, aos Saquaremas do tempo do Império. Utilizarei, assim, o conceito de "classe senhorial" também para as elites já em decadência na época do Império, os antigos aristocratas da cana -- em quem observo um posicionamento mais liberal, verificado em muitas lutas secessioionistas e no abolicionismo --, com uma adaptação crítica ao desdobramento desse tipo de mentalidade de classe, a senhorial, a uma situação de derrocada transgeracional.

Primeiramente, portanto, talvez seja preciso entender um pouco melhor o que críticos como Roberto Schwarz e Sidney Chalhoub aferem por essa referida "mentalidade de classe senhorial". Se não me engano, Chalhoub reputa ao senhor analisado por Machado em "Helena" uma frase que me parece ser bastante útil para compreender um aspecto importante dessa forma de ver o mundo. Esse personagem, em um de seus retumbantes dizeres supostamente racionais, profere as seguintes palavras: "eu sou a justiça!". Pois bem, vindo de um Saquarema, a interpretação dessa frase só pode ser compreendida de um ponto de vista conservador senhorial brasileiro. Essa frase, no entanto, por designar uma relação de identidade, transmitida pelo verbo "ser", também pode ser lida pelo ponto de vista contrário: não como se a vontade senhorial se impusesse sobre os seus dependentes, falcultando ao senhor decidir acerca dos desígnios do seu clã, como Chalhoub imputa a esse personagem; pode ser lida do ponto de vista contrário, como se este senhor, talvez mesmo por desespero, quisesse representar, ele mesmo, a justiça perante os olhos dos seus dependentes, de modo que não lhos perdesse.

Pois é. O processo histórico que empobrecia progressivamente as elites liberais do Império, que disputavam a hegemonia com a referida "classe senhorial" Saquarema do Centro-Sul, ofereceu a esses senhores poucas saídas frente ao empobrecimento e à perda de poder político e institucional consequente ao regresso conservador. Os coronéis da liberalíssima Guarda Nacional tinham a alternativa de ou recrudescerem no seu senhorio, podendo perder seus dependentes para outros senhores em melhor possibilidade de recebê-los, ainda mais pensando-se no processo de urbanização que se dava, ou tinham a possibilidade de operar a transvaloração da frase senhorial acima exposta "eu sou a justiça!". Enquanto senhores assolados pela necessidade, cabia-lhes a tendência de assumirem posições vanguardistas em relação à emancipação política dos seus dependentes, como forma, ainda que contraditória, de conservá-los encurralados sob os seus desígnios, agora sob uma dominação simbólica freyriana, hegeliana, como quisermos chamá-la. 

Há outra passagem da obra de Machado, comentada por seus críticos, que parece tão interessante quanto a outra de se reportar por aqui. Refiro-me a quando Cubas encontra Quincas Borba empobrecido, pedindo-lhe esmola. Cubas sensibiliza-se com a pauperização do ex-colega de liceu, e recomenda-lhe que busque um emprego, quando ele mesmo nunca sequer trabalhou. O salto analógico que pretendo realizar aqui não é tão simples quanto o anterior, da simples inversão da identidade proposta pelo verbo ser, porém imagino ser de fácil realização, ela também. Empobrecidos, os antigos aristocratas da cana, ao promeverem a emancipação dos seus dependentes, estariam realizando algo semelhante ao que Cubas havia recomendado a seu ex-colega: enquanto eu lidero do alto do meu cavalo, companheiros, eu sou a vanguarda desse processo histórico: combatam, façam a revolução, enquanto eu a coordeno, por trás da proteção política e econômica da tradição adquirida dos meus antigos ancestrais.

Se pensarmos na ideia de ideologia trazida por Marx, aquela de que as pessoas vivem alienadas, realizando a ideologia dos senhores, quando estão agindo em suas próprias vidas, o que eu defendo aqui é que, enquanto assumem os comandos vanguardistas dos seus antigos senhores, vivem um conflito ideológico, que é o do auto-emancipação comandada por uma ideologia coronelista transvalorada. A ideologia senhorial do centro de pujança econômica se modifica conforme a decadência do ciclo econômico opera sobre uma determinada região, e o fenômeno do vanguardismo de oligarquias decadentes passa a representar uma dominação ideológica sobre os seus dependentes ainda mais empobrecidos. Reafirmam-se laços de lealdade em detrimento das distinções de classe, e o o sentimento de classe mais propriamente se confunde com certa bonomia senhorial, típica do regime senhorial Saquarema, que impõe a submissão como condição de alforria.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

suicídio na night

Matar-se em uma festa deve ser um dos maiores prazeres que há: os outros convivas estarrecidos, principalmente se for uma festa que muitos conhecidos frequentem. A pergunta não vai querer calar, e a repercussão corre o risco de ser perpétua. Matar-se em uma festa tem o poder de derrubar o astral de todo mundo tanto, que talvez questionem-se, mesmo que por alguns segundos, o caráter hediondo de muitos dos seus festejares. Matar-se em uma festa com conhecidos, então, responsabiliza-os pelos seus atos e pelas suas omissões e expõe a verdade por trás de todo suicida: não a sua psyché, mas a sua sociologia. Só de imaginar as pessoas todas saindo, pensando que pretenderão mudar, e os algo-amigos, achando que deveriam ter te ajudado mais, percebendo que não fizeram o último que poderiam ter feito... O pensamento que invadirá a festa e os presentes surtirá o efeito do ódio que eu senti por não conseguir as coisas achando ser por azar: quando, na verdade, eu escondia de mim mesmo que eu sabia que a puerilidade humana era capaz de gerar abortos como eu, rejeitos de um corpo capaz de celebrar, ao meu arrepio.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

O Parentesco Universal Brasileiro

Pois bem. Venho contar-lhes a difícil constituição piscossociológica desse sujeito histórico contemporâneo nosso, que é o primo do primo, de alguém, como diz Machado de Assis, das "primeiras classes da sociedade" -- alguém este com tradições de família, relações adquiridas e cabedais, todos os três. É de se ter em conta que o primo do primo é uma persona comum no Brasil, e é de se perceber que, por toda a parte, há pessoas relacionadas familiarmente, seja por sangue ou por contra-parentesco, a essas pessoas das primeiras classes da sociedade. Ora, então a origem de tal realidade deve remontar ao passado: a tempos glórios, de riqueza e bonança, com sorte de pertencimento à Corte, ou ao menos de desfrute de algum ciclo econômico perdido, em quando um bisavô ou tataravô possuía uma fazenda boa e gozava das riquezas de que o pobre do primo do primo de alguém das "primeiras classes da sociedade" já hoje não goza mais. Época boa, quando os nossos ancestrais todos conviviam em algum Olimpo tropical úmido, na serra do mar ou da mantiqueira, em um Brasil menos densamente povoado. E esse passado... Ah, esse passado é-lhe útil, ao nosso grande irmão: na medida em que o aproxima, ao menos abstratamente, dessas pessoas que têm algo além de um restinho de um sobrenome bom -- dinheiro e poder. Esse passado, veja que coisa, é tanto o seu espantalho, quanto o seu amigo imaginário, que o conforta e o apedreja, sabendo esse primo do primo que a sua situação não é nem favorável nem desfavorável -- é por isso que se cala, porque, se se revolta, a distância de parentesco pode transformar um aliado potencial na busca por reposicionamento em um inimigo potencial, ainda que o desdém dos distantes parentes que permanecem nas nuvens não venha tão facilmente a mudar para olhar para os exilados financeiros do terceiro andar. Esse parentesco imaginário, virtual, ao mesmo tempo que concreto, pois comprovável, é a expressão prática de uma estrutura social que engessa as relações de solidariedade verticalmente para os primos dos primos, que se devem preferir ver mais pra lá do que pra cá, até por interesse material. Os que sobraram lá nas alturas das primeiras fileiras da boa sociedade, esses se casam entre si, ao que parece, e, ironicamente, esses casamentos podem representar interesse, objetivo ou subjetivo, para esses parentes distantes, uma vez que as suas relações de parentesco poderão remontar a uma genealogia futura ainda mais promissora. Mas o presente urbano brasileiro tem mesmo as suas especificidades... curiosas! Talvez até pela rapidez com que se tenha dado o processo de urbanização brasileira a partir de um passado agrário senhorial, a existência da sociedade de massas combine-se com essa sensação de parentesco universal, já que os antigos senhores que conservaram o poder, seja pelas forças do mercado, seja pelo direito de primogenitura, não estão a tantas gerações de distância assim dos ramos de sua família em empobrecimento progressivo, dos setores intermediários. As classes verdadeiramente abastadas, de novo por sua vez, ainda não se solidificaram em gostos, em hábitos e em interesses de classe, não tendo todas as estratégias matrimoniais já coincidido rumo à conservação absoluta do poder e à constituição de uma classe claramente apartada daquela que se formará a partir dos descendentes dos primos dos seus primos -- restam alguns laços, algumas alianças, algumas dependências, alguns remorsos, que a semi-distância objetiva não ceifou. (Será? Ou não passará, isso tudo, do seu modo abrasileirado de se distinguirem?) A se sublinhar, adicionalmente, que talvez esses primos dos primos tentem escapar do empobrecimento, ao menos do simbólico, por meio de casamentos, eles também, com outros primos de primos, criando uma segunda camada -- e uma terceria e uma quarta... -- de primos dos primos de outros primos dos primos, gerando uma descendência tendencialmente mais pobre que eles, confirmando assim uma pirâmide demográfico-genealógica que se reestruturará indefinidamente: com o topo se fechando mais, e as bases se alargando, conforme as taxas de natalidade e de mortalidade encontrem uma boa razão para isso, e os termos de troca com o Atlântico Norte forem bem trabalhados. Assim, pensarão estar relacionando-se de modo a angariarem posições mais elevadas, ao buscarem essas relações ambivalentes, quando apenas estarão reproduzindo uma antiga dinâmica intersubjetiva, corporificada -- e pacificada -- socialmente no Parentesco Universal Brasileiro.