sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

em que consistiria a serenojovialidade pós guerra-fria?

Dos helênicos, trar-se-ia a a serenojovialidade trágica. Dos atenienses, a dita "alexandrina". Nietzsche, em "O Nascimento da Tragédia", levanta essas duas maneiras de idolatria do passado grego e nos lança o desafio de como fazer para buscá-lo em seu melhor (caminho que não me parece muito bem explicado, diga-se de passagem). Mas e se nós transplantássemos o conceito de serenojovialidade grega para o mundo moderno? Haveria uma serenojovialidade iluminista, uma romântica, uma futurista, uma soviética, uma americana, uma oitentista: uma pós guerra-fria? Nas idas e vindas da história, a humanidade ocidental veio buscando as suas formas de autorrepresentação benfazejas, associadas a certo vigor juvenil e a certa visão de mundo abençoável. O homem do Moderno Ocidente criou para si, ele também, modos de vida que, ao longo da história, foram buscados, pelas sequência das gerações, como formas de recuperação, no passado, de ideais de plenitude de espírito, talvez nunca efetivamente alcançáveis -- mas que mexiam com os ânimos do mundo. Assim, a década de 1960, por exemplo, buscou uma serejovialidade revolucionária, de 1917 e mesmo jacobina. A década de 1980, buscou uma serenojovialidade romântica e trágica, novamente, ao mesmo tempo que americana, hollywoodiana. Mas e agora? Diante do fim do paradigma revolucionário, que embalou os desdobramentos de uma serenojovialidade iluminista, que se transfigurou em maoísta ou leninista, e diante da profunda descrença em um mundo felizmente reordenado por um liberalismo serenojovial e americano, que modelo passadista deveria essa humanidade, ameaçada pelo futuro, buscar?

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

o abjetismo conceitual

Por que deve a liberdade de expressão existir? Pergunto-me isso tendo em mente a ideia de um imperativo categórico; porque, do ponto de vista do moralmente certo, a liberdade de expressão, uma vez alcançado aquilo que é correto de se pensar, deveria ser suprimida. Mas como alguém poderia saber o que é correto de se pensar, se não houvesse o errado de se pensar a circular pelas ondas das nossas anteninhas de formigas, para que pudéssemos repulsá-lo com todo o nosso nojo e toda nossa razão? O ambíguo papel daquele que toma a coragem de ofender o público se mostra tão asqueroso quanto inevitável; tão ultrajante como desejável; tão denegável quanto necessário. As excrescências de muitas das mentes perturbadas, elencadas por uma lógica repreensível, são o baluarte de uma sociedade que oferece o seu cabrito aos deuses. Cultuar o erro talvez seja, em seu sentido histórico-moral, um exercício hermenêutico, que não pode tomar o caminho do erro como o certo. A hermenêutica do elogio à expressão abjeta deve estar cercada por um policiamento moral kantiano, fazendo do riso, da repulsa, do gozo do observador do mal um rito, que encaminhará semelhante sentimento às cinzas do passado, para ser destruído com um martelo. Melhor ainda: para ser cortado a foice.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

A Defesa do Ditirambo Platonizante

Se a intenção do pensador for uma reconstrução do pensamento total, nos moldes do que vinha sendo feito pela visão de mundo moderna antes da chamada crise da pós-modernidade, é preciso, então, que ele procure restabelecer a viabilidade do paradigma científico em detrimento do mítico, que vem prevalecendo nos modelos pós-modernos de concepção do conhecimento. Para isso, portanto, proponho ser necessário que se supere uma purista ideia nietzscheana de valorização da mentalidade helênica e de desvalorização da alexandrina. Digo isso defendendo que as transformações históricas, mesmo seguindo o modelo nietzscheano de dualidade apolo/dionísio, não se dão por um movimento pendular tão perfeito entre o apolo e o dionísio, em que o estágio dionisíaco avança e irrompe, como que por dentro das forças apolíneas, destruindo completamente as suas formas. O movimento da história dá-se por uma constante interação entre as forças apolíneas e as dionisíacas, muito mais sob um desenvolvimento dialético, de combinação das duas deidades, do que sob o que chamarei de modo "abstrato" de compreensão dessas forças de desenvolvimento da história, que Nietzsche apresenta. Apolo e Dionísio, segundo o que pretendo argumentar, são tipos ideais que, na realidade da vida e do mundo, entrelaçam-se todo o tempo, podendo um sobressair-se mais ao outro em algumas épocas, ou em alguns aspectos. O próprio desenrolar-se do tempo está permeado dessas duas fúrias conflitivas, que na verdade estão tão entremeadas, do ponto de vista realista, que é impossível dissociá-las.

Para uma melhor compreensão do que acabo de apresentar, proponho que se atente ao termo que Nietzsche mesmo cunhou para designar a maneira pela qual um novo pensamento helênico poderia surgir, uma vez que a serenojovialidade grega já estivesse tomada do socratismo ateniense. Refiro-me ao conceito de "Sócrates Musicante", conceito que Nietzsche invoca como único meio viável de superação do paradigma socrático, que ele tanto condena, e de encaminhamento para um novo paradigma trágico. Ora, parece-me irônico e óbvio que, uma vez que se tenha chegado ao paradigma socrático, tendo-se deixado o paradigma trágico, o único jeito que Nietzsche vislumbre de alcançar o tipo de conduta que ele valoriza, o trágico, contenha em sua forma, mesmo em sua proposta filosófica, a ideia de um "Sócrates", ainda que musicante. O que penso é que, uma vez acionado o gatilho da criação do mundo, em que Dionísio e Apolo se tenham fundido, não mais será possível superar essa fusão. Uma vez já vivida a realidade trágica, e esta tendo sido superada pela mentalidade alexandrina, o desdobramento histórico do retorno, ainda que parcial, ao "tragicismo", envolverá uma passagem por um "socratismo": em outras palavras, uma vez que a cultura tenha tornado-se o conteúdo a partir do qual a humanidade opera os seus impulsos de vida, a maneira pela qual as formas da criação e da destruição se reapresentarão para uma nova era tragicizante envolverá elementos, resquícios do anterior momento apolíneo: a partir dos quais ele se transforma, se adapta, e se reconstrói.

A própria ideia de uma musicificação de Sócrates contém essa paradoxalidade que a história apresenta na combinação dessas forças. O que eu pretendo, portanto, é, por meio da criação de um novo conceito, oposto e complementar ao de "Sócrates Musicante", que seria o do "Ditirambo Platonizante" (ou sociologizante, ou alexandrinizante), formular uma nova dualidade, que demonstre esse intricamento maior das forças de Apolo e Dionísio. A partir dela, imagino elaborar mais propriamente tanto a crítica à abstracionalidade da conceituação nietzscheana, quanto um novo panorama arquetípico que transmita a noção mais precisa e dialética da história. Esse novo binômio, por conter a intricação dos conceitos, explorará melhor a ideia de uma evolução da história que sempre retoma aspectos do período passado, sucessivamente. Assim, ainda que se possa defender que o paradigma científico tenha entrado em crise depois do colapso da URSS, a formulação dessa crise se deu em termos indiscutivelmente intelectuais -- mostrando-se como um "Sócrates Musicante". Desse modo, talvez com o mesmo vigor de um Ditirambo Trágico, as forças apolíneas de reconstrução de um novo pensamento total, que recuperará aspectos da crítica pós-moderna até, hão de ressurgir sob o arquétipo do Ditirambo Platonizante, ou Alexandrinizante, e uma nova formulação do materialismo histórico há de se elaborar, talvez por meio da práxis: ou melhor, de uma razão-praxis -- uma nova, crítica.