sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

A Defesa do Ditirambo Platonizante

Se a intenção do pensador for uma reconstrução do pensamento total, nos moldes do que vinha sendo feito pela visão de mundo moderna antes da chamada crise da pós-modernidade, é preciso, então, que ele procure restabelecer a viabilidade do paradigma científico em detrimento do mítico, que vem prevalecendo nos modelos pós-modernos de concepção do conhecimento. Para isso, portanto, proponho ser necessário que se supere uma purista ideia nietzscheana de valorização da mentalidade helênica e de desvalorização da alexandrina. Digo isso defendendo que as transformações históricas, mesmo seguindo o modelo nietzscheano de dualidade apolo/dionísio, não se dão por um movimento pendular tão perfeito entre o apolo e o dionísio, em que o estágio dionisíaco avança e irrompe, como que por dentro das forças apolíneas, destruindo completamente as suas formas. O movimento da história dá-se por uma constante interação entre as forças apolíneas e as dionisíacas, muito mais sob um desenvolvimento dialético, de combinação das duas deidades, do que sob o que chamarei de modo "abstrato" de compreensão dessas forças de desenvolvimento da história, que Nietzsche apresenta. Apolo e Dionísio, segundo o que pretendo argumentar, são tipos ideais que, na realidade da vida e do mundo, entrelaçam-se todo o tempo, podendo um sobressair-se mais ao outro em algumas épocas, ou em alguns aspectos. O próprio desenrolar-se do tempo está permeado dessas duas fúrias conflitivas, que na verdade estão tão entremeadas, do ponto de vista realista, que é impossível dissociá-las.

Para uma melhor compreensão do que acabo de apresentar, proponho que se atente ao termo que Nietzsche mesmo cunhou para designar a maneira pela qual um novo pensamento helênico poderia surgir, uma vez que a serenojovialidade grega já estivesse tomada do socratismo ateniense. Refiro-me ao conceito de "Sócrates Musicante", conceito que Nietzsche invoca como único meio viável de superação do paradigma socrático, que ele tanto condena, e de encaminhamento para um novo paradigma trágico. Ora, parece-me irônico e óbvio que, uma vez que se tenha chegado ao paradigma socrático, tendo-se deixado o paradigma trágico, o único jeito que Nietzsche vislumbre de alcançar o tipo de conduta que ele valoriza, o trágico, contenha em sua forma, mesmo em sua proposta filosófica, a ideia de um "Sócrates", ainda que musicante. O que penso é que, uma vez acionado o gatilho da criação do mundo, em que Dionísio e Apolo se tenham fundido, não mais será possível superar essa fusão. Uma vez já vivida a realidade trágica, e esta tendo sido superada pela mentalidade alexandrina, o desdobramento histórico do retorno, ainda que parcial, ao "tragicismo", envolverá uma passagem por um "socratismo": em outras palavras, uma vez que a cultura tenha tornado-se o conteúdo a partir do qual a humanidade opera os seus impulsos de vida, a maneira pela qual as formas da criação e da destruição se reapresentarão para uma nova era tragicizante envolverá elementos, resquícios do anterior momento apolíneo: a partir dos quais ele se transforma, se adapta, e se reconstrói.

A própria ideia de uma musicificação de Sócrates contém essa paradoxalidade que a história apresenta na combinação dessas forças. O que eu pretendo, portanto, é, por meio da criação de um novo conceito, oposto e complementar ao de "Sócrates Musicante", que seria o do "Ditirambo Platonizante" (ou sociologizante, ou alexandrinizante), formular uma nova dualidade, que demonstre esse intricamento maior das forças de Apolo e Dionísio. A partir dela, imagino elaborar mais propriamente tanto a crítica à abstracionalidade da conceituação nietzscheana, quanto um novo panorama arquetípico que transmita a noção mais precisa e dialética da história. Esse novo binômio, por conter a intricação dos conceitos, explorará melhor a ideia de uma evolução da história que sempre retoma aspectos do período passado, sucessivamente. Assim, ainda que se possa defender que o paradigma científico tenha entrado em crise depois do colapso da URSS, a formulação dessa crise se deu em termos indiscutivelmente intelectuais -- mostrando-se como um "Sócrates Musicante". Desse modo, talvez com o mesmo vigor de um Ditirambo Trágico, as forças apolíneas de reconstrução de um novo pensamento total, que recuperará aspectos da crítica pós-moderna até, hão de ressurgir sob o arquétipo do Ditirambo Platonizante, ou Alexandrinizante, e uma nova formulação do materialismo histórico há de se elaborar, talvez por meio da práxis: ou melhor, de uma razão-praxis -- uma nova, crítica.

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