segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

O Parentesco Universal Brasileiro

Pois bem. Venho contar-lhes a difícil constituição piscossociológica desse sujeito histórico contemporâneo nosso, que é o primo do primo, de alguém, como diz Machado de Assis, das "primeiras classes da sociedade" -- alguém este com tradições de família, relações adquiridas e cabedais, todos os três. É de se ter em conta que o primo do primo é uma persona comum no Brasil, e é de se perceber que, por toda a parte, há pessoas relacionadas familiarmente, seja por sangue ou por contra-parentesco, a essas pessoas das primeiras classes da sociedade. Ora, então a origem de tal realidade deve remontar ao passado: a tempos glórios, de riqueza e bonança, com sorte de pertencimento à Corte, ou ao menos de desfrute de algum ciclo econômico perdido, em quando um bisavô ou tataravô possuía uma fazenda boa e gozava das riquezas de que o pobre do primo do primo de alguém das "primeiras classes da sociedade" já hoje não goza mais. Época boa, quando os nossos ancestrais todos conviviam em algum Olimpo tropical úmido, na serra do mar ou da mantiqueira, em um Brasil menos densamente povoado. E esse passado... Ah, esse passado é-lhe útil, ao nosso grande irmão: na medida em que o aproxima, ao menos abstratamente, dessas pessoas que têm algo além de um restinho de um sobrenome bom -- dinheiro e poder. Esse passado, veja que coisa, é tanto o seu espantalho, quanto o seu amigo imaginário, que o conforta e o apedreja, sabendo esse primo do primo que a sua situação não é nem favorável nem desfavorável -- é por isso que se cala, porque, se se revolta, a distância de parentesco pode transformar um aliado potencial na busca por reposicionamento em um inimigo potencial, ainda que o desdém dos distantes parentes que permanecem nas nuvens não venha tão facilmente a mudar para olhar para os exilados financeiros do terceiro andar. Esse parentesco imaginário, virtual, ao mesmo tempo que concreto, pois comprovável, é a expressão prática de uma estrutura social que engessa as relações de solidariedade verticalmente para os primos dos primos, que se devem preferir ver mais pra lá do que pra cá, até por interesse material. Os que sobraram lá nas alturas das primeiras fileiras da boa sociedade, esses se casam entre si, ao que parece, e, ironicamente, esses casamentos podem representar interesse, objetivo ou subjetivo, para esses parentes distantes, uma vez que as suas relações de parentesco poderão remontar a uma genealogia futura ainda mais promissora. Mas o presente urbano brasileiro tem mesmo as suas especificidades... curiosas! Talvez até pela rapidez com que se tenha dado o processo de urbanização brasileira a partir de um passado agrário senhorial, a existência da sociedade de massas combine-se com essa sensação de parentesco universal, já que os antigos senhores que conservaram o poder, seja pelas forças do mercado, seja pelo direito de primogenitura, não estão a tantas gerações de distância assim dos ramos de sua família em empobrecimento progressivo, dos setores intermediários. As classes verdadeiramente abastadas, de novo por sua vez, ainda não se solidificaram em gostos, em hábitos e em interesses de classe, não tendo todas as estratégias matrimoniais já coincidido rumo à conservação absoluta do poder e à constituição de uma classe claramente apartada daquela que se formará a partir dos descendentes dos primos dos seus primos -- restam alguns laços, algumas alianças, algumas dependências, alguns remorsos, que a semi-distância objetiva não ceifou. (Será? Ou não passará, isso tudo, do seu modo abrasileirado de se distinguirem?) A se sublinhar, adicionalmente, que talvez esses primos dos primos tentem escapar do empobrecimento, ao menos do simbólico, por meio de casamentos, eles também, com outros primos de primos, criando uma segunda camada -- e uma terceria e uma quarta... -- de primos dos primos de outros primos dos primos, gerando uma descendência tendencialmente mais pobre que eles, confirmando assim uma pirâmide demográfico-genealógica que se reestruturará indefinidamente: com o topo se fechando mais, e as bases se alargando, conforme as taxas de natalidade e de mortalidade encontrem uma boa razão para isso, e os termos de troca com o Atlântico Norte forem bem trabalhados. Assim, pensarão estar relacionando-se de modo a angariarem posições mais elevadas, ao buscarem essas relações ambivalentes, quando apenas estarão reproduzindo uma antiga dinâmica intersubjetiva, corporificada -- e pacificada -- socialmente no Parentesco Universal Brasileiro.

Nenhum comentário: