terça-feira, 4 de novembro de 2008

pai e filho

Era mais um causo mal-resolvido, continuação de outros causos mal-resolvidos, que sempre terminavam por tentar se resolver numa conversa, numa exposição de pensamentos, de achismos. Nunca concordaram. O que ocorria era que cada um falava o que achava certo, os dois compreendiam e não concordavam um com o outro, mas achavam por bem fazer que sim com seus semblantes, com os movimentos verticais de cabeça, indo e voltando, tudo para não brigarem mais, para oficializarem um fim de mal-entendido, que se perpetuava. Era na cozinha, um em pé, outro sentado, expondo metáforas, pois o que se conversava era tão intimista que se falassem da verdade, ela pareceria tão pequena... Seria pequena e definitiva: o verdadeiro ponto da discussão era um tema divisor de águas na contemporaneidade. Para que não discordassem, deixavam a verdade, que era simples e pequena, intocada, metaforizada, e assim poderiam compreender e não poderiam discordar. Se dissessem o que era que acontecia realmente, se formariam os partidos, cada um iria para o que pensava e babal, cada um prum lado, cada vida na sua, cada tristeza enorme para cada lado e o pior, desvendariam o que os fazia conversar sobre outras coisas, por estar em suspenso as origens. O mal apercebido, o mal pros olhos abertos, não seria saudável, saberiam dele o tempo todo, palavras doem e marcam, magoam, nada seria como antes, nada poderia voltar a ser como antes, nada jamais poderia ser tentado esquecer novamente. Por isso que enquanto um falava, o outro olhava para o azulejo, cheio de ranhuras, anti-derrapante, geladeira brastemp, começava a desenhar num bloquinho de anotações pro telefone que ficava ali perto. E quando este se calava, o que continuava a falar prolongava-se mais, ia além nas suas metáforas, falava como se tivesse segurando um microfone de ouro, que amasse muito, e falaria tudo o que aquele campo semântico puxava em sua mente para não soltá-lo, coisas que provavelmente ao que ouvia em pé ofendia, mesmo que permanecesse calado. De repente irrompia-se de sei silêncio e esboçava falar algumas coisas, umas confirmações, ponderaçõeszinhas pequenas, que não interferiam no pensamento total de quem falava, porque interromper dava muito trabalho, ir contra, argumentar dava muito trabalho - argumentar poderia trazer a necessidade da verdade à tona, o que arruinaria tudo. O assunto pareceu acabado quando o que falava mais percebeu sua monologuisse. Entediar quando falava de intimismo não era o que se pretendia e, se acontecia, deveria parar, beber seu copo d’água pós-janta e seguir para a sala de TV, assistir à sua novela, clichê, como ele mesmo dizia, enquanto o que ouvia em pé permaneceu na cozinha, sentou numa cadeira lá e continuou um pouco, tomando fôlego para chegar-se junto, na sala de TV, aturar a novela, que falaria das universalidades da forma mais idiotizante do mundo; e iriam se reconhecer, os dois, em um daqueles papéis bobos, irritantes. O sono lhe tomou conta como pretexto inconsciente para levantar-se e rumar para o quarto. Dormir e amanhã era mais um mesmo dia.

Dormiu, acordou com o despertador que, em seu sonho, se confundia com um martelo de tribunal martelando a banca, pipipipipi. Era o despertador mesmo, que o fez levantar, reconhecer o mundo, censurar o sonho, mijar, escovar os dentes em frente ao espelho e sair. Girou a maçaneta enquanto acreditava que as coisas iriam sanar, que as oportunidades para ele não paravam de se abrir, que ele era, era... era o que mesmo? E desceu o elevador pelo qual esperava e não aguentava esperar.

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