segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Gula:

Gabriela olhava todo aquele banquete, toda aquela variedade, toda aquela riqueza desgutável, engulível, saboreável, não conseguia parar de comer. Quando achava que estava satisfeita, olhava para o lado e via um lindo pernil. Ainda não tinha provado o pernil, tinha uma aparência tão maravilhosa, lustroso, quentinho, certamente delicioso. A rapariga - prostitua mesmo! - nunca tinha visto tanta comida em sua frente. Acostumada com refeições magras, pouco calóricas e, por conseqüência, pouco saborosas, Gabriela viu-se no mais maravilhoso cantinho do céu. Era o que seus hormônios lhe diziam. Como magra e necessitada que era, não era comum que acordasse e comesse algo, somente quando fazia algum programa de noite inteira, num hotel, mas nunca num hotel desses, com tanta comida: isso era mais raro ainda, coisa de uma vez na vida outra na morte! TINHA que aproveitar. Naquele momento, ao acordar e ver tal fartura, aquela pessoa magra liberava quantidades imensuráveis de Grelina no seu estômago. As únicas oscilações possíveis na sua linha de raciocínio era a respeito do que começaria comendo. Ou o que comeria depois, era tudo tão lindo... Cada mordida, cada movimento involuntário da língua, cada deglutição explorava os mares de sabores que toda aquela maravilha porpocionava. Sem saber, Gabriela explorava todos os poços de sabor com suas papilas gustativas. Ela com certeza nada sabia sobre a existência de papilas gustativas, onde elas estariam localizadas, o que elas captavam; a jovem era tão superficial que parecia somente sentir. Não entendia aqueles prazeres por enquanto, não pensava no amanha, numa possível indegestão, numa engorda que a faria perder clientes, quem sabe. Era mais forte do que ela. Aquele hormônio que estimulava ímpetos, ações, sobrepunha-se à razão pouco desenvolvida daquela prostitua novata.
Seu cliente, Senhor Amadeus, era assim que se apresentara a ela, tinha cara de mafioso, bicheiro, traficante, mas daqueles que nunca são presos. Ele tudo observava. Pouco comia, um ou outro pedaço de pão com queijo Bria, alguns goles na taça de champagne... Via tudo, via nela o prazer rústico, não analisado, percebia quase que sensivelmente os níveis hormonais altíssimos. Como racional que era - e exímio conhecedor das ciências -, o Senhor Amadeus esperava, com a paciência de um sábio, a euforia da gula cessar naquela menina. Essa parecia ter Grelina a sair pelo ouvido! Não parava de comer! Enquanto não acontecia o esperado, o senhor gostava de observar os semblantes do prazer puro. Aquela menina burra, devido a um longo e irreversível período de ignorância, já não tinha mais a capacidade de superar o mundo em que ficam restritos aqueles que somente sentem. Era isso o que pensava o camarada provedor. Esperava, ansiosamente, pelas baixas hormonais da moça; esperava ver na emergência da Leptina e na sucumbência da Grelina a mudança comportamental de Gabriela.
Gabriela começava a ter os primeiros sinais de saciedade. Dava um golinho no champagne, depois um golão no copo d'água, sentia-se levemente entalada, mas aqueles líquidos ingeridos abriam um espaço a mais no estômago, liberava o esôfago antes obstruído por pão e queijo e filé e pernil. Começava a sentir os bolos alimentares boiando naquele acúmulo de líquidos que diluíam o suco gástrico, forçando ainda mais a célula G a produzir mais e mais Gastrina, que por sua vez estimulava o estômago a produzir o ácido gástrico no estômago. Talvez a garota não soubesse, mas os fluxos de Leptina começavam a chegar ao estômago. Devido a grande ingestão em um período muito curto de tempo, as doses de Leptina enviadas ao estômago foram muito altas. A comida, para ela, já não representava mais tanto assim. A Leptina agora fazia Gabriela não desejar mais tanto aquele bando de comida que ainda jazia sobre a mesa de jantar da casa do Senhor Amadeus. Sentia seu estômago lotado, inclusive comentara com Amadeus "estou lotada!". Amadeus rira e perguntou se ela não queria recostar-se na cama. Aquela quantidade imensa de comida ingerida, de uma hora para outra, não parecia mais bela, parecia um chumbo, um diabo, um encosto na sua barriga. Respirava mal e, a cada respirada mais profunda, seu estômago anuncava um arroto que tinha que prender a respiração para soltá-lo antes. Depois soltava o ar respirado pelo nariz. Cada arroto era um alívio.
Gabriela começava a sentir-se mal. Queria ficar o quanto pudesse ali recostada em meio a tantas almofadas na cama do Senhor Amadeus, vendo televisão, com o buxo cheio. Foi quando teve que ir. O velhote tinha que receber um embaixador qualquer e não poderia ser visto com uma garota de programa. A menina levantou-se, deu dois passos e teve um teto. Viu tudo preto por fraçoes de segundos, mas logo sua visão recuperou-se. Sentiu o peso da sua barriga. Levantou a blusa e viu a protuberância que seu estômago fazia sobre seu corpo magro. Dava para ver que não era gorda, e sim que havia comido muito. E põe muito nisso! Gabriela não conseguia andar direito. Despediu-se do seu cliente, recebeu o pagamento, e foi andando pelo hotel, descendo o elevador, passando mal, mas não sabia se estava realmente passando mal. Poderia chegar em casa, ficar um tempo acordada e em seguida dormir e acordar bem. Mas, ao andar pela rua, seu destino foi se mostrando outro. Tudo ficou preto de novo, botou a mão na barriga e caiu deitada na Avenida Atlântica, às duas e quinze da tarde. Vomitou muito, ficou inconsciente, foi levada para o hospital. Morreu. De Dispepsia crônica, uma doença que tinha e não sabia, pois nunca tinha comido tanto. Para os mal entendidos, morreu mesmo foi de indigestão!




Dispepsia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Dispepsia
Grelina: http://pt.wikipedia.org/wiki/Grelina
Leptina: http://pt.wikipedia.org/wiki/Leptina
Gastrina: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gastrina

Nenhum comentário: