quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O Social-Esteticismo

Havia uma tal concepção de progresso e desenvolvimento, lá por 2500, considerada pelas mais modernas teorias, que visava o bom entendimento entre o seres humanos, o equilíbrio entre a razão e o prazer, somente sorrisos no rosto. Entendia-se, nessa época, que a vida só seria livre o suficiente se todas as pessoas feias do mundo nunca tivessem existido. Embasada em filosofia, a nova onda compreendia a importância que havia na estética para todas as coisas, como elas se tornavam muito mais atraentes, muito mais interessantes, aceitáveis, quando eram belas. Não haveria mais a situação de ser feio, gordo e ninguém querer você: todas as pessoas poderiam estar interessadas em quem realmente quisessem, porque todos seriam bonitos e poderiam se escolher. Pessoas bonitas são mais bem tratadas em todos os lugares. E como consequencia inevitável da boa retórica sobre o Fim de Tarde e o sussudio beiroso, inerentes à vida, essa concepção começou a atingir o campo político. Depois de circular pela mídia, pela imprensa, jovens aderiam à causa, pelo mundo melhor, e as pessoas feias começaram a se desesperar. Mas nessa época não havia para onde fugir: em 2359 foi fundado o governo global. Não havia mais países, entendeu-se que era mais justo que todas as decisões fossem tomadas por um governo central, do mundo todo. As regiões foram redivididas e cada uma delas tinha um número de representantes no Congresso do Globo. Todos podiam votar diretamente para o Comitê, de 15 governantes do Globo, o poder executivo. Mas, como em todo processo de centralização, o regime se tornava um tanto quanto autoritário: não havia outra forma de governo em todo o planeta que não fosse o Conselho Global. Em 2493 foi fundado o Partido do Social-Esteticismo. O Partido contava com intelectuais de todas as partes do Globo. Philip Marquez e Gabriel Mateaux, dois grandes sociólogos do Social-Esteticismo, filiados ao partido, começaram um movimento de circundar o Globo espalhando as idéias que sustentavam. Falavam de Kant, do Imperativo Categórico e a sua relação com a Estética da espécie humana e começaram a adquirir adeptos pelo mundo todo. Todos sabiam do que se tratava o Social-Esteticismo e muitos líderes internacionais começavam a se filiar ao Social-Esteticismo, que era seletivo. O Social-Esteticismo fez os belos se identificarem belos. O Social-Esteticismo fez o belos se articularem politicamente, o que nunca haviam pensado em fazer por sempre terem sido bajulados - pelos feios. O Social-Esteticismo não falhou. Nas eleições de 2526, 33 anos após a fundação do Partido, é conquistada a maioria no Conselho, além do Comitê. Das 567 regiões do Globo, 427 eram do Partido Social-Esteticista. Todos os 15 membros do Comitê eram Social-Esteticistas. As primeiras medidas começaram a ser tomadas. O Comitê nomeou as Comissões de Entendimento de Beleza pelo mundo todo. As Comissões eram nomeadas a partir do Comitê, que selecionava na região quem entendia de beleza e quem poderia, dentro das regiões, nomear sub-divisões corretas e com senso de beleza apurado. Era meticuloso. Depois que isso fosse feito, as pessoas seriam chamadas a comparecer ao julgamento de beleza - quem não fosse aprovado iria doar todos os seus órgaos e deixar o mundo pelo bem da humanidade. O mundo, em 30 anos, ficou limpo e belo - claro que as Comissões não erraram. Políticas de natalidade eram desenvolvidas e o povo global só tinha gente gata. De todos os tipos, morenos, ruivos, negros, brancos, loiros, orientais, latinos, índios, árabes, todos expostos em lindos Outdoors do governo - os modelos nunca eram pagos, eram voluntários. Os belos foram escolhidos porque eles sempre fazem as suas vontades, portanto nunca conheceram o sussudio. Os belos, por serem belos, permitem que as pessoas aceitem-nas mais, porque elas são belas. Só quem era feio que não gostava dessa idéia. O mundo vivia o progresso do sonho, da liberdade de escolha, todos eram bonitos, não havia feios, as filosofias criadas eram otimistas, não havia problemas sociais, não havia nenhum problema - aparentemente. Mas o partido Social-Esteticista se dividiu em três em 2553. Uma ala acreditava que havíamos encontrado a solução do problema do mundo e que nada mais precisava ser feito. Outra ala acreditava que devíamos valorizar as feiúras, porque elas tinham seu lado belo, seu lado positivo, mesmo que interno, para o mundo ser mais belo, conceitualmente, é claro. E a outra ala acreditava que as idéias paradoxais e dicotômicas em relação à feiura só haviam surgido porque ainda não tinha-se alcançado a supremacia da beleza - sem nenhum tipo de Comissão de Entendimento de Beleza vigente desde 2547 era o que era mais provável. Crise política. O congresso, antes com um partido, contava agora com três partidos que arguiam incessantemente. Na rua, os reflexos não eram diferentes. Os Feio-é-belo manifestavam-se pacificamente nas praças e diziam que era preciso rever nossos conceitos em relação ao mundo. Os Pró-Comissões de Entendimento de Beleza formavam um grupo agressivo que, paramilitarmente, tentava exterminar os Feio-é-belo - diga-se de passagem, esse grupo era realmente composto por gente feia, que devia estar no recalque por não ser bonita num mundo de belos, ou eram o mais feio que podia haver num mundo de belos. 4 anos de discussões no Congresso para que o grupo que acreditava já ter alcançado a plenitude com a beleza se convencesse de que o mundo só não era totalmente belo porque ainda havia feios, que geravam todo o conflito. Os dois partidos se uniram e foi feita uma nova limpeza. As Comissões de Entendimento de Beleza foram recriadas e perpetuadas. Por cerca de 80 anos, as Comissões selecionavam arbitrariamente, uma vez por ano, quem não estivesse belo, como se fosse um senso. O mundo vivia numa paz estranha, numa felicidade estranha, numa liberdade estranha, num sexualismo estranho. Uma náusea, reflexo do totalitarismo. Mesmo os que nasciam belos podiam tornar-se feios ao longo da vida e, se isso acontecesse, eles teriam que ser mortos. Ou seja, não havia possibilidade de não estar com tudo em cima, magro, bonito, sarado. A vida era bela demais e aquilo era estranho, porque eu podia entender que alguém não era belo e mandar chamar um membro da comissão para julgar - era extremamente injusto que aquela pessoa que não se esforçava para ser bela continuasse a respirar o mesmo ar que eu. Se mais 30 pessoas tivessem achado feio também, era só recolher as assinaturas e nem pra julgamento ele ia. Até que o partido ruiu em dois em 3026. Legitimou-se a opinião pró-feio novamente no Congresso. Os tempos ficaram escabrosos. Dessa vez parecia determinante: os feios alegavam uma contradição no sonho Social-Esteticista. Era dito que o mundo seria melhor se os feios nunca tivessem existido, era o que se podia ler em monumentos do governo mundo afora. Ora, mas os feios sempre existiram. O pé-no-chão daquelas afirmações inquietava os humanos. Por todo o Globo a divisão se apercebia. Os feios tinham, não, os feios queriam mudar, queriam convencer e começaram a trabalhar para isso ao invés de cultivarem sua própria beleza. Criaram filmes que dramatizavam a vida dos feios no período da primeira limpa e também sobre o drama de uma pessoa que de uma hora pra outra era considerada feia. Emergiu uma nova estética: a poesia feia, o teatro feio, o mundo fervilhou em criatividade sobre o tema. O mundo entrou numa maré de culpa, de auto-crítica, de arte Aristotélica e o sussudio subiu, o fim de tarde foi visto e o sonho havia acabado. O incentivo ao feio foi criado, tendo como principal feitoria o sistema de cotas para feios em universidades, postos de trabalho, fotos de outdoors e ilustrações de livros escolares. Até que em 3042 um Comitê só de feios foi eleito; os feios eram moderados e não queriam matar os belos, porque eles sabiam como era sofrer e agora se sentiam cheios da razão de mandar de um jeito calmo e ponderado, aquilo era o bom agora - e o bom não é o belo? Depois, um cara chamado Phill Collins lançou uma música sobre a feiúra. Todo mundo cantava para os feios, de novo, porque havia beleza na feiúra e o que se queria era o belo, como se podia entender dos comerciais de televisão na emissora estatal. Direita e beleza sempre acabam vencendo as revoluções.

2 comentários:

Bernardo disse...

irado o texto, vc consegue organizar tudo em seus versos, tá bonito e interessante, vc pode arrumar uma grana de roteirista, hahaha.
abraço
bernardo sundae

Tangolomango reviews disse...

fato.
mandou muito bem, incrivel, incrivel!