quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Individualmente juntos

Maria estava andando pela cidade, toda atarefada. “Tenho que levar a mamãe no médico às cinco hoje, mas que droga, por que sempre eu tenho que fazer as coisas sozinha? A mamãe também... ainda tenho que pagar essa merda dessa cirurgia que ela já fez, por que ela não foi responsável o suficiente para perceber que necessitaria de dinheiro para ela? É, na verdade acho que ela pensou mesmo, por isso teve três filhos, algum deles se responsabilizaria moralmente por ela, e essa pessoa sou eu. Será mesmo que a mamãe só quis ter filhos para poder viver tranqüilamente, sem que pudesse ficar sozinha, sem que tivesse que se preocupar sozinha com seus problemas? Será essa a verdadeira face da minha mãe? Como posso estar pensando uma coisa dessas, ela está muito próxima da morte e eu a culpando por tudo. Mas, sei lá, pode até ter sido essa a intenção primordial dela, mas até que desenvolvemos, por todos esses anos, um amor profundo entre nós duas, melhor, entre a família toda. Com o papai morto agora ela ficou só com a gente. Ainda bem que ela tem a gente. Imagina se não tivesse? Mas às vezes essa não foi a intenção dela, ela apenas viu, com o passar dos anos, que seria para isso que nós serviríamos, porque com os Gugu e a Lilinha eu não penso assim, tive eles porque quis, porque queria passar o que eu poso passar para alguém. Mas a mamãe tem estado diferente demais nesses últimos dias, acho que ela está arrependida de alguma coisa, algo me diz que é isso, mas o que poderia ser? Não sei, às vezes agora ela está se tocando de que nós somos a única coisa que ela tem, e que antes éramos apenas a coisa que ela teria como base. Mas a base ficou mais importante que os topos, ela não tem mais o papai, os amigos que sobraram ela não tem tempo para encontrar, fica indo de médico em médico, coitada. Deve ser duro saber que se pode morrer, a todo momento. Talvez seja isso que a leve a pensar nas coisas da vida dela. E ela pensar nas coisas da vida dela está me fazendo pensar na vida dela, que coisa mais doida! Será que há mais gente pensando nela agora, será que aquelas velhas chatas amigas dela estão pensando nela, os fatos vividos? Será que os meus irmãos estão pensando nela também? Devem estar. Devem estar pensando que ela agora morre e eles não têm como ajudá-la. E como que envergonhados não têm coragem de aparecer, mesmo que não possam ajudar. E acabam cada vez mais fugindo. Fogem porque ficam com vergonha de ter se omitido por vergonha de não poder ajudar. Então eles não vão por vergonha da vergonha. Mas que bobo isso! Até parece que eles não sabem que a mamãe queria vê-los. Mas a mamãe, do jeito que é, com certeza soltaria uma indireta diretíssima para eles a respeito da grana que eles não podem dar para ela. Que merda! Será que a mamãe pensa que se ela tivesse nos criado melhor talvez todos estivessem hoje cheios da grana, podendo ajudá-la muito mais, prolongando sua vida? É capaz, d jeito que ela só pensa nela!”

De súbito, o pensamento teve que dar uma desacelerada, Maria chegara ao hospital e acabara de encontrar com o Doutor Joaquim. Via todas aquelas enfermeiras andando de um lado para outro, levando comida para os enfermos nos quartos – era hora do almoço –, outras filhas e outros filhos indo encontrar seus pais, ou parentes enfermos, com tantas preocupações quanto as de Maria. Pegavam, da mesma forma que ela, o Doutor Joaquim de cada um no contrapé, os médicos estavam indo almoçar, sair daquela inhãnha de trabalho e ainda vinha uma filha de paciente, ou parente de paciente, perturbar seu momento de refresco da mente, podia ter chegado um pouco mais cedo, enquanto eu ainda estava no meu expediente, mas teria que atendê-la e ainda transparecer segurança, esperança, pois é isso que querem, e ao mesmo tempo apreço pelo paciente, mostrar-se preocupado com a situação, não deveria parecer indiferente. Cada paciente, apesar de pacientes todos eles, deveriam parecer não-mais-um. Deveriam parecer o paciente João, a paciente Márcia, particularmente determinados. Além de tudo, tinha que entender que os acompanhantes que chegavam nessa hora muitas vezes estavam trabalhando e preocupando-se com seus entes queridos.

Mas que diferença fazia no que ele sentia agora? Doutor Joaquim continuava insatisfeito em ter que permanecer mesmo que só mais dez minutos ali dando esclarecimentos indiferentes a alguém que tinha preocupações, como todos os outros acompanhantes de pacientes que já haviam o pegado de contrapé ao longo desses anos todos de profissão que detinha Doutro Joaquim. A impaciência turva, diluída em compreensão e ética profissional, continuava ali, mesmo que racionalmente soubesse que aquilo “não era legal”.

– O quadro de sua mãe está estável, ela deve permanecer na Unidade Intensiva durante mais uns quatro dias, pois ela chegou ontem, então tem que passar a realizar suas funções básicas sem os aparelhos. Então, somente então, ela irá para a Semi-Intensiva. Somente depois ela irá para o quarto. Ela está lúcida, bastante lúcida diria, ficou reclamando do hospital comigo hoje quando fui examiná-la de manhã. Temos que esperar mais um pouco para que possamos avaliar o sucesso da cirurgia, amanhã faremos alguns exames. Agora, me desculpe, mas é minha hora de almoço! A senhora vai ficar aí até mais tarde?

– Sim, vou ficar, mais tarde nos falamos!

– Então tá certo! E fique calma, ao que tudo indica, ela está reagindo bem!

“Por que essa necessidade extrema de ficar tantos dias em cada setor do hospital? Han, não devia nem ter me perguntado, o hospital deve sugar o quanto pode do plano de saúde. E minha mãe no meio disso tudo. E esse médico, pareceu-me confiante, acho que vai dar tudo bem. Mas câncer é complicado. Ela pode desenvolver metástase muito rapidamente. Foi o que a Mariana me disse uma vez. Ai, tenho que ver a mamãe!” pensava Maria, depois de despedir-se do Doutor.

Ao cruzar o corredor para chegar ao quarto de sua mãe, Maria viu um filho conversando com um médico, que parecia empanzinado de alguma coisa, mas não tirava o sorriso de conforto e compreensão da cara. Maria pensou se esse era o semblante do Doutor Joaquim ao conversar com ela, pois não percebeu se foi, estava pensando demais sobre outras questões mais importantes como a vida de sua mãe para perceber, mas com certeza era esse mesmo. Viu o senhor despedir-se do médico, que também ia almoçar, e encaminhar-se para o quarto de seu ente querido, ou não tanto, apenas um ente. O homem estava com uma pasta na mão, devia estar no trabalho antes, assim como Maria. Vai ver pensava em aflições tanto quanto Maria. Ela olhou e, por algum motivo, sentiu compaixão. Sentiu-se depois indiferenciada. Era tão contribuinte para o plano quanto ele, era tão chata quanto ele para um médico, era tão filha de alguém doente quanto ele, trabalhava e ia visitar seu ente no horário de almoço tanto quanto ele, preocupava-se tanto quanto ele, sentia-se como ele. E no mundo em que só pensamos em nós mesmos, como Maria que não percebera de cara o semblante enauseado do Doutor Joaquim, como não percebera que tantas pessoas passavam por problemas em virtude da saúde de alguém, e eram todos jogados no mesmo saco, talvez tivesse conta no mesmo banco que ele, seu carro poderia ser da mesma marca que o dele. Poderia ser que morasse num prédio tanto quanto ela e que tivesse que resolver, além de tudo isso, questões com os condôminos na reunião de condomínio sobre algum jovem fumando maconha no prédio. Estavam juntos numa cidade de seis milhões de habitantes, onde tudo o que se faz é em bloco, mas calma, segundo o que dizem, é a era do indivíduo! E se todos dizem, deve realmente ser!

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