O protestantismo... Ah, o protestantismo... Há tanta coisa que se procura ler em suas entrelinhas que eu também me aventurei a tentar descobrir seu espírito, seu significado para além da mera constatação de que ele existiu. Assim, para que eu pudesse considerar qualquer coisa sobre o protestantismo, eu teria que ter sido movido por algum impulso, que vou apresentar primeiramene, e teria que estabelecer um metodozinho, uma listinha de perguntas encadeadas que eu fiz para conseguir ler alguma coisa pelas brechas desse "acontecimento" histórico.
A motivação, o impulso, foi aparentemente intuitivo - seria de fato se eu não estivesse lendo coisas, tanto pra faculdade, como avulsas. Estava vendo um filme de comédia satirizando o dogmatismo católico ("Dogma") e percebi que a sátira era feita justamente sobre toda uma espécie de cosmologia, mitologia determinista católica que, no tom da sátira, soavam completamente absurdas. Eu pensei, em seguida, "ora, os EUA são um país protestante, e essa crítica aos dogmas da igreja, ou seja, a essa historinha contada que o fiel simplesmente escuta e acredita, por medo, que seja aquilo mesmo, é nada mais que um reflexo de uma perspectiva protestante no que diz respeito ao contato com deus." E pensei logo em seguida: "enquanto o catolicismo impõe um esquema de regras escritas pela divindade institucionalizada que não podem ser transpostas, ou seja, conserva o contato com deus numa espécie de burocracia própria mediadora, em que o bem é institucionalmente prescrito, o protestantismo traz o contato com o divino para um campo mais terreno, mais acessível ao homem; o protestantismo proporciona ao indivíduo criar para si mesmo a sua ideia de divindidade, de espiritualidade: o divino, o espiritual, ou seja, aquilo que vai dar valor e riqueza e motivação à sua vida, é criação do próprio indivíduo, é cada um que reconhece em si mesmo o seu conceito de deus. O estímulo, a intuição foi essa, basta agora esquematizar as minhas perguntas e meus argumentos que se sucederam a essa catarse.
Primeira pergunta: com o que essa legitimação da liberdade de conceituação do divino está relacionada ainda? Essa pergunta necessita que se estabeleça uma relação de alteridade entre o catolicismoe o protestantismo. O que quero fazer evidenciar do catolicismo é essa distância do indivíduo com deus, é essa falta de liberdade que há na capacidade do entendimento do que é o divino: o catolicismo acaba por impor a palavra de deus, tolhindo a capacidade humana de criação por si próprio dos valores que vão guiar suas vidas. O catolicismo, com seus dogmas, estrutura a necessidade de uma concepção metafísica que guie, imperceptivelmente aos homens, o rumo das coisas. Mas eu gostaria de ir além nessa reflexão sobre o catolicismo: na verdade, a metafísica seria um elemento de um tipo de posicionamento do homem diante das suas próprias ações: a forma mais amedrontada como ele encarava suas ações, o que implicava que para ele, homem, suas vontades não pudessem ser aquilo que ele soubesse que estava lhe guiando - haveria ainda uma "ditadura" do noumeno. O protestantismo, então, em oposiçao ao catolicismo, trouxe uma relação entre deus e o homem muito mais próxima. Deus, instância que determina valores para a vida, estava na capacidade criativa de cada homem, o que é dizer que o mesmo motor do protestantismo é o motor da vontade: a metafísica já se encontrava a um passo de acabar quando a religião deu aos homens legitimidade para criarem eles mesmos a sua ideia divina, o seu arcabouço de valores que os fariam continuar vivendo. É quase uma implosão da necessidade de se trabalhar com o intangível aos homens - os homens finalmente conhecem deus intimamente.
A segunda pergunta: se a igreja antes estipulava limites de contato entre deus e os homens, não seria também dizer que a igreja impedia os homens de buscarem conhecer dentro de si aquilo que os motivaria a continuar vivendo? Não teria sido a igreja católica uma instituição que buscava cristalizar o espírito dentro de uma jaula exterior e intangível, tornando aquilo DIVINO? O protestantismo, então, não teria dito que o espírito está nos homens, ou que eles são capazes de encontrá-lo, como que desmistificando o DIVINO? Vejo aqui que o protestantismo foi a expressão religiosa de um movimento que trazia o espírito para cada indivíduo: um passo apenas atrás do desvendar do espírito totalmente individualizado, esse espírito contemporâneo que valoriza a vida sem a necessidade da compreensão do toque divino na existência. O protestantismo, portanto, trouxe o espírito, isto é, aquilo que dá o tom da manifestação dos homens, para o nível dos homens. (A proximidade dessa espiritualidade individualizada com a ideia mais apaixonada de vontade parece-me inegável. A busca, dentro de si mesmo, por um espírito e a busca, dentro de si, por motivos importantes para si para continuar vivendo - mesmo que não sejam mais motivos divinamente encaixados.)
Terceira pergunta: essa apropriação humana do espírito só com o protestantismo não seria o mesmo que dizer que antes os homens não conheciam o espírito, apenas concebiam sua ideia? O que resultaria que o espírito, ou seja, a motivação "sincera", "feliz", individual, só teria surgido com a reforma? Sim, foi assim que eu vejo ter se sucedido. A noção de espírito, apropriada pelo homem, desmistifica a existência, traz ao indivíduo uma perspectiva mais material, mais concreta da existência: aquilo que ordena o mundo é aquilo que ele mesmo encontrou em si para justificar tal ordem. É uma espécia de libertação de uma visão vendada, mais ascética, que o catolicismo gerava. Enjaulando o espírito num exterior, a vida terrena, material, perde totalmente o seu sentido e o homem fica totalmente dependente das considerações que a igreja fazia sobre a existência - ele ouvia e concordava e não lhe cabia criatividade para tentar figurar as coisas a seu jeito: o catolicismo, o dogma, veda qualquer precipitação de imaginação, de desenvolvimento do pensamento.
Quarta pergunta: já que com o protestantismo o espírito desceu aos homens (o que mais futuramente na linha histórica vai se expressar transfigurado de motivos individuais, paixões, vontades para viver - sempre tenho medo de ser progressista, mas, enfim...), de que maneira os homens passaram a interpretar o que seria esse espírito? Eu palpito que os conteúdos mentais desses homens é que embasavam as suas concepções sobre o divino. Dessa forma, homens de um mesmo tempo e espaço, sim, dividem algumas concepções de espírito, por mais que tenham ainda ascepções bem particulares. Mas o que há além disso é que o protestantismo legitimou uma cadeia de reconstrução constante da ascepção do espírito, legitimou a historicização dos valores dos homens. Digo isso porque o espírito, assim como deus, ao que tudo indica, não é uma instância eterna, é mais uma concepção humana, uma instrumento pra balancear a tabela de compensações da vida. Deus, após o protestantismo, passou a ser somente o espírito - acho que esse termo melhor define, porque deus deixou de ser metafísico e tornou-se individual. Fui e voltei, mas ainda não respondi totalmente a quarta pergunta. A maneira como os homens vão determinar seu espírito é correspondente à sua eduação e àquilo que é universal humano, seja o que for. Empresto a educação, aqui, o sentido mais largo possível, o sentido das experiências que o indivíduo tem, o sentido da cultura na qual está inserido. Ou seja, o protestantismo garantiu aos homens que eles poderiam desenhar naquilo que lhes era educado, na sua cultura, traços dos próprios homens, traços de sua própria vontade. Eu diria que o protestantismo é a pontinha do iceberg, é o que nos aparece de todo um movimento por trás, multicausal, que se engatilha no "momento" protestantismo. O espírito, que agora toma o lugar antes ocupado por deus, metafísico no catolicismo, é a possibilidade do homem olhar através da sua cultura, daquilo que lhe foi ensinado, e escolher, dentro daquilo, os motivos que o fazem viver, o seu espírito. O protestantismo, então, abriu aos homens a possibilidade que o catolicismo os tirava: a possibilidade de olhar para o mundo, para os processos, as consituições das coisas. O protestantismo é imagem de um mundo em que os homens aplicam suas vontades às universalizações, aplicam suas vontades como guia da sua vida.
Quinta pergunta: se a vontade dos homens, que se sobrepôs ao espírito dos homens do protestantismo, assim como o espírito, também é movida por circunstâncias culturais, que aspectos podem ser observados desse movimento histórico todo? Primeiramente, é preciso esclarecer algumas questões referentes às formas e aos conteúdos da cultura ocidental depois dessa apropriação individual do espírito preconizada pelo protestantismo. A individualização do espírito, ou seja, essa maleabilidade do conceito do que vai valorizar a vida dos homens, marca o caráter engatado, alavancado da nossa sociedade. Os valores não são mais estanques nem hegemônicos, os valores da nossa sociedade, ou seja, suas estruturas morais, os conteúdos para as vontades dos homens, estão espalhados igualmente entre os homens sob o nome de bom senso. O que aconteceu foi que, com a sobreposição do espírito sobre deus e da vontade sobre o espírito, a consciência, nem que seja uma sensação disto, se aflorou como elementar à manutenção de determinados valores culturais e de modificação de outros. A vontade dos homens que vai passar a determinar, por seus desejos, que totens serão mantidos ou quebrados, e isso também valendo para os tabus. Peguemos o exemplo da arte. O nível de abstração a que ela chegou, como li num texto de Lygia Clark, uma neoconcretista, demanda que o homem tenha um espécie de comportamento ético-religioso em relação à arte. O que ela quereria dizer com isso, seguindo a linha de pensamento que venho defendendo aqui? Que deve haver uma vontade entre os espectadores da arte, assim como houve do autor, de que ali, na arte, ainda reste algum espaço para a contemplação. Ou seja, para nossa tese aqui, a arte é uma manutenção, por "consciência", ou por vontade, de um comportamento religioso contemplativo, mas que depende de uma ética da vontade dos indivíduos por contemplarem. Eu diria que nós despejamos na arte a nossa necessidade aflitiva que despejávamos na religião, justamente porque a arte foi se tornando mais abstrata e dependia da vontade. É como se, com a arte, nós estivéssemos contemplando a composição da nossa cultura ao máximo: vendo como a vontade é capaz de construir sentido universal pela simples historicidade e culturalidade inerentes aos homens. Ver como a arte ainda funciona, mesmo que abstrata, é ver como os homens ainda se portam de maneira social e se unem por algo que transcende a vontade, e a arte é ter a consciência de que nossas vontades não são más, são legitimadas, são culturais, são afirmação do nosso espírito, do nosso direito, livrando a vontade do fardo diabólico que a ela sempre foi apontado pelo catolicismo.
A motivação, o impulso, foi aparentemente intuitivo - seria de fato se eu não estivesse lendo coisas, tanto pra faculdade, como avulsas. Estava vendo um filme de comédia satirizando o dogmatismo católico ("Dogma") e percebi que a sátira era feita justamente sobre toda uma espécie de cosmologia, mitologia determinista católica que, no tom da sátira, soavam completamente absurdas. Eu pensei, em seguida, "ora, os EUA são um país protestante, e essa crítica aos dogmas da igreja, ou seja, a essa historinha contada que o fiel simplesmente escuta e acredita, por medo, que seja aquilo mesmo, é nada mais que um reflexo de uma perspectiva protestante no que diz respeito ao contato com deus." E pensei logo em seguida: "enquanto o catolicismo impõe um esquema de regras escritas pela divindade institucionalizada que não podem ser transpostas, ou seja, conserva o contato com deus numa espécie de burocracia própria mediadora, em que o bem é institucionalmente prescrito, o protestantismo traz o contato com o divino para um campo mais terreno, mais acessível ao homem; o protestantismo proporciona ao indivíduo criar para si mesmo a sua ideia de divindidade, de espiritualidade: o divino, o espiritual, ou seja, aquilo que vai dar valor e riqueza e motivação à sua vida, é criação do próprio indivíduo, é cada um que reconhece em si mesmo o seu conceito de deus. O estímulo, a intuição foi essa, basta agora esquematizar as minhas perguntas e meus argumentos que se sucederam a essa catarse.
Primeira pergunta: com o que essa legitimação da liberdade de conceituação do divino está relacionada ainda? Essa pergunta necessita que se estabeleça uma relação de alteridade entre o catolicismoe o protestantismo. O que quero fazer evidenciar do catolicismo é essa distância do indivíduo com deus, é essa falta de liberdade que há na capacidade do entendimento do que é o divino: o catolicismo acaba por impor a palavra de deus, tolhindo a capacidade humana de criação por si próprio dos valores que vão guiar suas vidas. O catolicismo, com seus dogmas, estrutura a necessidade de uma concepção metafísica que guie, imperceptivelmente aos homens, o rumo das coisas. Mas eu gostaria de ir além nessa reflexão sobre o catolicismo: na verdade, a metafísica seria um elemento de um tipo de posicionamento do homem diante das suas próprias ações: a forma mais amedrontada como ele encarava suas ações, o que implicava que para ele, homem, suas vontades não pudessem ser aquilo que ele soubesse que estava lhe guiando - haveria ainda uma "ditadura" do noumeno. O protestantismo, então, em oposiçao ao catolicismo, trouxe uma relação entre deus e o homem muito mais próxima. Deus, instância que determina valores para a vida, estava na capacidade criativa de cada homem, o que é dizer que o mesmo motor do protestantismo é o motor da vontade: a metafísica já se encontrava a um passo de acabar quando a religião deu aos homens legitimidade para criarem eles mesmos a sua ideia divina, o seu arcabouço de valores que os fariam continuar vivendo. É quase uma implosão da necessidade de se trabalhar com o intangível aos homens - os homens finalmente conhecem deus intimamente.
A segunda pergunta: se a igreja antes estipulava limites de contato entre deus e os homens, não seria também dizer que a igreja impedia os homens de buscarem conhecer dentro de si aquilo que os motivaria a continuar vivendo? Não teria sido a igreja católica uma instituição que buscava cristalizar o espírito dentro de uma jaula exterior e intangível, tornando aquilo DIVINO? O protestantismo, então, não teria dito que o espírito está nos homens, ou que eles são capazes de encontrá-lo, como que desmistificando o DIVINO? Vejo aqui que o protestantismo foi a expressão religiosa de um movimento que trazia o espírito para cada indivíduo: um passo apenas atrás do desvendar do espírito totalmente individualizado, esse espírito contemporâneo que valoriza a vida sem a necessidade da compreensão do toque divino na existência. O protestantismo, portanto, trouxe o espírito, isto é, aquilo que dá o tom da manifestação dos homens, para o nível dos homens. (A proximidade dessa espiritualidade individualizada com a ideia mais apaixonada de vontade parece-me inegável. A busca, dentro de si mesmo, por um espírito e a busca, dentro de si, por motivos importantes para si para continuar vivendo - mesmo que não sejam mais motivos divinamente encaixados.)
Terceira pergunta: essa apropriação humana do espírito só com o protestantismo não seria o mesmo que dizer que antes os homens não conheciam o espírito, apenas concebiam sua ideia? O que resultaria que o espírito, ou seja, a motivação "sincera", "feliz", individual, só teria surgido com a reforma? Sim, foi assim que eu vejo ter se sucedido. A noção de espírito, apropriada pelo homem, desmistifica a existência, traz ao indivíduo uma perspectiva mais material, mais concreta da existência: aquilo que ordena o mundo é aquilo que ele mesmo encontrou em si para justificar tal ordem. É uma espécia de libertação de uma visão vendada, mais ascética, que o catolicismo gerava. Enjaulando o espírito num exterior, a vida terrena, material, perde totalmente o seu sentido e o homem fica totalmente dependente das considerações que a igreja fazia sobre a existência - ele ouvia e concordava e não lhe cabia criatividade para tentar figurar as coisas a seu jeito: o catolicismo, o dogma, veda qualquer precipitação de imaginação, de desenvolvimento do pensamento.
Quarta pergunta: já que com o protestantismo o espírito desceu aos homens (o que mais futuramente na linha histórica vai se expressar transfigurado de motivos individuais, paixões, vontades para viver - sempre tenho medo de ser progressista, mas, enfim...), de que maneira os homens passaram a interpretar o que seria esse espírito? Eu palpito que os conteúdos mentais desses homens é que embasavam as suas concepções sobre o divino. Dessa forma, homens de um mesmo tempo e espaço, sim, dividem algumas concepções de espírito, por mais que tenham ainda ascepções bem particulares. Mas o que há além disso é que o protestantismo legitimou uma cadeia de reconstrução constante da ascepção do espírito, legitimou a historicização dos valores dos homens. Digo isso porque o espírito, assim como deus, ao que tudo indica, não é uma instância eterna, é mais uma concepção humana, uma instrumento pra balancear a tabela de compensações da vida. Deus, após o protestantismo, passou a ser somente o espírito - acho que esse termo melhor define, porque deus deixou de ser metafísico e tornou-se individual. Fui e voltei, mas ainda não respondi totalmente a quarta pergunta. A maneira como os homens vão determinar seu espírito é correspondente à sua eduação e àquilo que é universal humano, seja o que for. Empresto a educação, aqui, o sentido mais largo possível, o sentido das experiências que o indivíduo tem, o sentido da cultura na qual está inserido. Ou seja, o protestantismo garantiu aos homens que eles poderiam desenhar naquilo que lhes era educado, na sua cultura, traços dos próprios homens, traços de sua própria vontade. Eu diria que o protestantismo é a pontinha do iceberg, é o que nos aparece de todo um movimento por trás, multicausal, que se engatilha no "momento" protestantismo. O espírito, que agora toma o lugar antes ocupado por deus, metafísico no catolicismo, é a possibilidade do homem olhar através da sua cultura, daquilo que lhe foi ensinado, e escolher, dentro daquilo, os motivos que o fazem viver, o seu espírito. O protestantismo, então, abriu aos homens a possibilidade que o catolicismo os tirava: a possibilidade de olhar para o mundo, para os processos, as consituições das coisas. O protestantismo é imagem de um mundo em que os homens aplicam suas vontades às universalizações, aplicam suas vontades como guia da sua vida.
Quinta pergunta: se a vontade dos homens, que se sobrepôs ao espírito dos homens do protestantismo, assim como o espírito, também é movida por circunstâncias culturais, que aspectos podem ser observados desse movimento histórico todo? Primeiramente, é preciso esclarecer algumas questões referentes às formas e aos conteúdos da cultura ocidental depois dessa apropriação individual do espírito preconizada pelo protestantismo. A individualização do espírito, ou seja, essa maleabilidade do conceito do que vai valorizar a vida dos homens, marca o caráter engatado, alavancado da nossa sociedade. Os valores não são mais estanques nem hegemônicos, os valores da nossa sociedade, ou seja, suas estruturas morais, os conteúdos para as vontades dos homens, estão espalhados igualmente entre os homens sob o nome de bom senso. O que aconteceu foi que, com a sobreposição do espírito sobre deus e da vontade sobre o espírito, a consciência, nem que seja uma sensação disto, se aflorou como elementar à manutenção de determinados valores culturais e de modificação de outros. A vontade dos homens que vai passar a determinar, por seus desejos, que totens serão mantidos ou quebrados, e isso também valendo para os tabus. Peguemos o exemplo da arte. O nível de abstração a que ela chegou, como li num texto de Lygia Clark, uma neoconcretista, demanda que o homem tenha um espécie de comportamento ético-religioso em relação à arte. O que ela quereria dizer com isso, seguindo a linha de pensamento que venho defendendo aqui? Que deve haver uma vontade entre os espectadores da arte, assim como houve do autor, de que ali, na arte, ainda reste algum espaço para a contemplação. Ou seja, para nossa tese aqui, a arte é uma manutenção, por "consciência", ou por vontade, de um comportamento religioso contemplativo, mas que depende de uma ética da vontade dos indivíduos por contemplarem. Eu diria que nós despejamos na arte a nossa necessidade aflitiva que despejávamos na religião, justamente porque a arte foi se tornando mais abstrata e dependia da vontade. É como se, com a arte, nós estivéssemos contemplando a composição da nossa cultura ao máximo: vendo como a vontade é capaz de construir sentido universal pela simples historicidade e culturalidade inerentes aos homens. Ver como a arte ainda funciona, mesmo que abstrata, é ver como os homens ainda se portam de maneira social e se unem por algo que transcende a vontade, e a arte é ter a consciência de que nossas vontades não são más, são legitimadas, são culturais, são afirmação do nosso espírito, do nosso direito, livrando a vontade do fardo diabólico que a ela sempre foi apontado pelo catolicismo.
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