segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Era assim sempre: todas as vezes que saíam para viajar seus pais, eles quase que não se falavam, quase que não se gostavam - não se gostavam. Seus pais iam praticamente todo fim de semana viajar; enquanto estavam aqui, representavam uma espécie de unidade familiar, limites acabavam sendo determinados para não perturbar os pais, limites não podiam ser avançados para não perturbarem os pais, nenhum dos dois irmãos podia.

E os pais sempre iam, não deixavam de ir, tinham quase uma vida dupla, uma vida quase árcade, só para o pai, que fugia da úrbia para descansar no campo sereno, ar puro, tranqüilidade. E aqui, aqui começavam os embates, os avanços sobre as normas, começava a se abrir um espaço sem determinações. Um dos irmãos, logicamente o mais velho, sentia-se como um pai: deveria zelar pelo pouco fluxo de pessoas na casa, deveria zelar ela normalidade e vivia zangado, de cara emburrada, como o pai, para que tudo ficasse em ordem. Ignorado. O irmão mais novo cagava e andava para o mais velho. Ia e vinha com quem quisesse e ai dele se contasse alguma coisa: naquela família, alcagüetes eram mais crucificados que os próprios infratores – era uma casa de ex-vermelhos, no século XXI.

A coisa ficava no poder paralelo. Conforme o irmão soltava máximas moralizantes, com milhões e milhões de argumentações racionalizadas, democratizadas, institucionalizantes, o outro, o mais novo, reconhecia na ausência dos pais a ausência da autoridade, mesmo que ela fosse necessária idealisticamente para que se mantivesse a paz. Mas quem queria a paz, quem queria a paz era ele. Para o mais novo, o custo benefício das esbórnias seqüenciadas por animosidades fraternais era altíssimo. A paz era coisa de gente como ele, e ele era diferente.

Quanta coisa era diferente, do consumo de drogas a vontades de vida. O mais velho queria uma vida ganha, uma vida certa e não fazia nenhum esforço por isso: seguia a profissão do pai, advogado, herdaria o escritório sem nenhum grande esforço e o máximo que poderia acontecer era deixar tudo de lado e virar um juiz – esse era, na verdade, o verdadeiro plano. O outro gostava de viver num maremoto. Sem nunca saber o que fazer da vida, ficava a maior parte do tempo no quarto, escrevendo, vendo coisas na internet, na televisão e consumindo muita droga. Saía com os olhos vermelhos, seguido de um, dois, três, opa, quatro, cinco amigos, que entravam no quarto com ele à tarde e só saíam lá pelas 2 da manha. Aos olhos do irmão isso era algo incômodo. Saía de seu quarto, onde não fazia nada quando não estava com a namorada, ia no banheiro e ouvia as risadas e a música no quarto do irmão. Aquilo, de ter muita gente no quarto do irmão, aquilo daquela gente toda, invadindo sua propriedade, aquela gente que ele não gostava e sabia que os pais também não gostavam não podiam ficar ali, mesmo que não saíssem do quarto. Aí ele voltava para o quarto, onde estava sua namorada, mais careta ainda, de camisolinha reclamando do tempo que aquelas pessoas estavam na casa. Ela sentia-se em mais direito de permanecer lá, por ser namorada, o que era natural, portanto, achava que o namorado deveria ir lá e reclamar com o irmão, que iria compreende racionalmente a inconveniência da presença deles lá, porque a namorada se sentia invadida – duvido que não desse por causa disso.
A parede do quarto não ouvia os barulhos de nenhum dos lados. Os lados ouviam-se um ao outro, embarreirados por aquela parede. Todos os barulhos que reverberavam de uma parede para a outra só exaltavam a animosidade conquistada. Sem os pais, sem a metrópole, fazia-se uma guerra fria, sem esculachos, sem agressões, somente olhares e vetos e restrições, boicotes, um ao outro. As sensações sabiam-se: um estava odiando o outro, num clima de cordialidade de sala de TV, onde o irmão mais velho tentava impor alternativas democráticas e seccionais. Para o jovem rebelde com vontade, se não tinha pai nem mãe, não tinha pai nem mãe e não era nenhum irmão mais velho que iria tirar-lhe o direito de diversão.

Se odiavam tão profundamente, tão territorialmente, tão periodicamente que, quando perdiam seus territórios, quando voltavam seus pais com comida e os seus mandamentos, Caim e Abel regozijavam-se com as iguarias trazidas do local viajado e comentavam o sabor e a magnitude, os dois a espera do próximo embate, sorridentes e harmonioso enquanto era tempo.

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